Papagaio

6/01/98


Papagaio!

É mesmo para indicar forte espanto, conforme a vigésima segunda acepção do Aurélio, que repito: Papagaio! Não podia imaginar que a palavra tivesse tantos significados assim e, alguns surpreendentes, como tudo mais que me fez exclamar inicialmente: Papagaio! Sabia que papagaio é também o nome de uma "pequena pasta de algodão que se coloca ao pé de quem dorme e à qual, por brincadeira, se ateia fogo"? Bem, cada um deve saber com quem dorme e com quem brinca... É nome ainda daquele urinol de hospital, o masculino, é claro, que não se chama compadre, como se poderia supor, mas patinho ou papagaio. Papagaio! Ah, as palavras... meras palavras!

O fato é que o Paco criou cenas tragicômicas na tarde quente de céu carregado. Paco é o papagaio da vizinha. Não estou brincando. Não contei antes que tinha uma vizinha com um papagaio apenas porque não o sabia. Se temos uma vizinha com um papagaio porque não imaginar logo o navio, a faca amolada atravessada nos dentes, o lenço colorido amarrado na cabeça e, lá no alto de nosso mastro imaginário, a infalível bandeira a tremular nas ventanias com o mesmo crânio que pasmou Hamlet? Confesso que dispenso o olho de vidro e a perna de pau. Fico só com a cara de mau. A não ser, é óbvio, que se trate de futebol - aí, tenho não uma, mas as duas pernas de pau!

Paco, o papagaio, fugiu e, atrás dele, um bando. Não de papagaios e papagaias, as tais aves psitaciformes da família dos psitacídeos, mas de vizinhos e vizinhas empenhados na impossível missão de resgatar Paco para o cativeiro. Esse bando, sim, fazia mais alarido que um bando de araras... Há uns dois dias ouço a gritaria, que se distingue de outros cantos e latidos...

Toca a campainha. Ora, numa ermida o soar da campainha é, além de raro, sempre uma sensação. Caminhava para o portão, tomado pela multidão e já tocavam outra vez! A ansiedade e excitação dos caçadores não podia ser contida pela velha cancela de maçaranduba... Contaram que Paco, o papagaio da vizinha havia fugido da gaiola há três dias, o que explicava, de imediato, a presença da mulher com uma baita gaiola dourada na mão. Pediram para entrar pois, agora, Paco estava empoleirado no alto de uma árvore na minha casa... Nenhuma dúvida quanto a isso. Paco emitia sons com uma regularidade irritante - repetia um único som: óóóóc... óóóóc... óóóóc, quase um miado! De baixo, a da gaiola tentava um diálogo, com o falsete costumeiro que alguns usam para falar com crianças: "vem, filhinho, desce... vem com a mamãe... vem que eu vou te dar comida... Paco (assim descobri o nome do papagaio) vem aqui, vem com a mamãe, vem..." E ele, continuava na dele: óóóóc... óóóóc... óóóóc...

Um outro tinha uma imensa escada, dessas que o pessoal da Light usa para subir nos postes, de dois estágios deslizantes... Acertou a escada na árvore e um terceiro subiu. Outro passou para ele uma espécie de puçá, que era, de fato, uma rede de limpar piscina. Lá está o bicho... eu torço pelo papagaio, isso é, pela sua liberdade... a mulher da gaiola continua sua ladainha em falsete... Aí, Paco voa galhardamente, o vôo desajeitado dos papagaios, mas voa! Pousa em outra árvore, três ou quatro casas rua abaixo... Chega um carro. Faz uma manobra quase como nos filmes americanos e estaciona. Sai de dentro um rapaz com uma caixa de ração para aves. Dá a caixa para a mulher da gaiola... Não sei por quê, havia sempre dois ou três carros acompanhando o grupo dos caçadores. Um deles, com os faróis sempre acesos...

O bicho voou e, o bando desceu a rua quase correndo e era exatamente esse quase que dava o toque cômico à cena. Não corriam nem andavam. Era um quase rebolado... cheio de angústias e gritinhos e suspiros e palpites! Toda a cena se repetiu na árvore lá de baixo, que disseram ser um jacarandá... No próximo vôo Paco cruzou em diagonal e foi pousar numa árvore de uma rua transversal. Na subida o bando bufava como qualquer caminhão... A cena se repetiu e as árvores também, três, quatro ou mais vezes, até que Paco se encarapitou no travessão mais alto de um poste. Lá, podia ser visto. No meio das folhagens sempre sumia, transformava-se apenas num som: óóóóc... óóóóc... óóóóc... No alto do poste parecia ter encontrado o poleiro que lhe convinha, como a gávea de um velho galeão, por exemplo. O bando viu que nada poderia fazer... os fios de alta tensão estavam lá, como que para proteger o papagaio. A mulher parou sua ladainha... todos olhavam Paco, que andava para um lado e para o outro, no travessão do poste, muito à vontade, cutucando os pés com o bico, de quando em quando... A noite chegava. Paco tinha conseguido mais um dia...

 



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