Pátina

 

Num belíssimo poema Manuel Bandeira dá uma lição de vida com muito menos palavrório do que se costuma usar por aqui, enquanto os leitores pedem crônicas menores... Conta, o poeta que, num gesto inadvertido, fez em pedaços uma pequena estátua de gesso - este o nome do poema: Gesso - que vivia sobre sua escrivaninha. Catados e colados os cacos, a estatuazinha continuou lá. No dia do poema ele olhou o gesso e descobriu que gostava mais então, depois do acidente e da ação do tempo, que havia transformado em pátina as imperícias da colagem.

Conclui com um verso em que diz que só é verdadeiramente vivo o que sofreu. Infelizmente, não sei onde foi parar meu exemplar de suas poesias para citar letra por letra, mas está dito. A imagem, pelo menos, está preservada.

Hoje, me ocorre essa lembrança, da pátina do tempo nas marcas que recolhemos vida afora. Não falo das grandes cicatrizes que, de um jeito ou de outro, todos temos. Os psicólogos gostam de chamá-las grandes perdas. Falo das pequenas coisas, sem gravidade, mas que ficam marcadas, como a cola do poeta e mudam de cor e textura com o passar dos anos.

A carta que você recebeu, por exemplo, deixou para responder depois enquanto o tempo seguiu seu curso e a resposta foi ficando, esquecida - ou melhor, não ficou esquecida, de fato: está lá, como pátina, desenhando rugas no gesso da alma... Um belo dia você lembra do que parecia esquecido e aquela lembrança dói. Já parece impossível remendar a negligência e ao próprio desleixo se junta o sentimento de culpa, uma sentença, mesmo que leve, com que nos condenamos.

Assim, muitas atitudes menores, que na hora parecem insignificantes, têm uma importância que só o tempo nos permite avaliar. Essas pequenas coisas, fáceis de driblar, acrescentam, grão a grão, o seu peso e fazem com que cada um de nós seja único e o único a poder conhecer a dimensão da própria carga.

A carta que ficou sem resposta - afinal, o remetente nunca terá certeza de que a sua chegou (e a ausência da resposta cria essa mentira e essa dúvida), pode-se imaginar como desculpa para a preguiça - é apenas exemplo de uma atitude: aceitar uma aparente solução momentânea, mais confortável ou que exige menos, naquele instante, traindo sua convicções íntimas, aceitando o pequeno engodo, driblando a verdade - em resumo: quebrando e remendando sua própria ética, como uma estatuazinha de gesso.

Da mesma forma que com o objeto do poeta, o tempo fará mais viva, em nós, essa dor.

 

Publicada Quarta-feira, 9 de Junho de 1999

 

 

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