auto-retrato 

Por causa do pó

08/05/12

O pátio do colégio era terra batida e o tempo seco levantava poeira com os folguedos dos pequenos. São lembranças de um velho, mais de sessenta anos passados. Eram meus primeiros passos em um jardim de infância, o 'Sagrado Coração de Jesus' ou coisa parecida, na rua Paissandu, no Flamengo, Rio.

Por causa da poeira, uma freira balançava um grande regador cheio de água para diminuir o pó. As meninas aproveitavam, então, o vaivém do jato de água para brincar: corriam de um lado para outro atentas ao ir e vir daquela chuva para passar pela frente do regador sem se molharem. Gostei da ideia e me preparei para, também eu, passar correndo no recuo da água e me ver são e salvo do lado oposto, quando ela voltasse regando tudo pela frente.

Não estaria a contar, não fosse o ocorrido: calculei mal o vaivém pendular do regador a balançar como pêndulo no braço da freira e fui regado, como no filme pioneiro dos Lumière. Foram apenas respingos, sem maiores consequências, salvo para a alma que se encharcou e saiu envergonhada e, eu, derrotado: meninas conseguiam, eu, não!

Tais tolices nem mereceriam menção, salvo por serem sobras do final dos anos quarenta. Além desta lembrança, pouco me resta daquele 'jardim': uma obra, ao lado e, nela, um bate-estacas. À tarde, via o pesado martelo subir lentamente pelos trilhos, entre rangidos acompanhados de bufos do motor, para cair com força e estrondo sobre a estaca que se fincava ao solo. Criança, gostava daquele bate-estacas. Hoje, com certeza me incomodaria. Tenho lembrança ou imaginação de privadas mais baixas para as crianças. Nada mais restou do Sagrado Coração de Jesus.

A memória - indispensável, mas traiçoeira! - prioriza a a emoção. A mistura de raiva e humilhação por causa do fracasso tornou indelével este fragmento insignificante.

Tue, May 08, 2012 9:57 pm

Gostei, vô. Bonitas lembranças, no jeito que foram escritas. Gosto da sua escrita!

      sem assinatura

Obrigado. E eu, gosto da sua. As lembranças, em si, pouco importam, curioso é como a memória seleciona o que guardar.


Wed, May 09, 2012 12:26 pm

Olá Clode

imagem da missivistaimagem da missivista

Certas coisas ficaram mesmo indelevelmente marcadas em nossa memória. Neste final de semana fui visitar o Castelo do Conde de Sarzedas no centro de São Paulo.

Fiquei muito emocionada ao rever o "meu castelo", pois vivi vizinha a ele até meus 17 anos. Esse castelo me faz lembrar das brincadeiras de rua, de me encarapitar em seus muros, do medo dos barulhos das corujas, das hortências do jardim... Ai que saudade!

Hoje lá está o castelo emoldurado por um moderníssimo prédio espelhado, que o reflete misturando-o com o céu: um cenário mágico que guarda boa parte de minhas lembranças.

Obrigada pela crônica!

Beijos da Vera

Jamais soube deste castelo mas, o importante, são suas belíssimas fotos. Parabéns!
Acho que precisaria aprender com você, agora, o que a enfoco lhe ensinou...


Thu, May 10, 2012 11:33 am

Quantos anos vc tinha nesta época?
Incrível mesmo a nossa memória...
Eu guardo inúmeras lembranças de coisas deste tipo, no jardim de infância, as vergonhas, sentimentos de perda, de humilhação...
Acho que é quando começamos a depender da aceitação do outro, ser respeitado como indivíduo.
eu era brava, briguenta e chorona..rsrsrs acho que ainda sou!

bjs

MH

Acho que cinco, mas poderiam ser seis... Não tenho mais a quem perguntar (só as mães lembram esses detalhes).
Atrai-me essa seletividade aleatória da memória. Por que lembramos, por que esquecemos?

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