Pranto

 

Toda a natureza chora. A metáfora do poeta pouco importa à plantação, mas as folhas lavadas são como um sorriso sem metáfora. O pó copula com o chão no refazer do barro primordial. Os deuses sonham um novo Adão para a Eva que mal conseguem vislumbrar. Chove! Chuva sem parar. O ar se desfaz em água e penetra pelas narinas, na pele, nas roupas e borra a imagem da canícula tropical. A geladeira sempre foi uma secadeira - a mais poderosa máquina de secar! Fora dela, nos trópicos, toda a natureza chora embalada por rãs e sapos.

Ah, delicado equilíbrio que ainda mantém vivos todos os seres, apesar do Homem e sua fúria de incompreensão. O broto inesperado no galho caído, que parecia apodrecer no chão. Os mosquitinhos todos que importunam até o desespero. A vida, na luta para continuar viva além do que os olhos podem ver...

Seis bilhões precisam cumprir suas rotinas e desditas para comprar o almoço de amanhã. Gigantesca planilha de seres humanos! Mudar o valor de uma célula gera uma cadeia de alterações, para manter um outro equilíbrio, de contas políticas e econômicas. Manter, apesar de todos afirmarem que o balanço está péssimo. Todos, até os que lutam para e querem que as contas continuem como estão. Todos concordam, segundo o eufemismo mais conveniente à ocasião: redistriduição de renda, países mais ou menos industrializados, população mais carente, grupo dos sete, primeira classe, VIP, colunáveis etc.

A chuva continua e pode chover ainda durante alguns dias, semanas, mas vai parar. O sol voltará a brilhar e a aquecer, ainda que oblíquo e escasso, para que o inverno se cumpra. A atmosfera lavada será mais leve e o ar, mesmo nas aglomerações mais absurdas, mais fácil de respirar. A primavera se alimentará de tanta água e os frutos serão mais polpudos e carnosos nesta e na próxima estação, que tropical é também o ter frutos sempre, muitos e saborosíssimos, à beira da estrada, com ou sem marimbondo no pé...

Já, quanto àqueles seis bilhões de seres, quantos dias, semanas, séculos, milênios serão precisos para alguma coisa mudar?

 

Publicada segunda-feira, 5 de julho de 1999

 

 

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