desenho de Lu Guidorzi
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berro - a parte inútil da vaca
Publicação esporádica destinada a perder-se como berro de vaca que, todavia muge, apesar da inutilidade declarada de seu berro.

Premeditar

18/10/01

Os primeiros raios de sol dissipam as últimas névoas das chuvas da madrugada. O amanhecer vem precioso, cravejado de gotículas por toda parte. No ar parado só é perturbado pelos muitos cantos de pássaros, que parecem calmos nas copas de folhas novas. Há em tudo uma especial delicadeza nessa manhã.

As chuvas da madrugada lavaram a poeira das folhas e deixaram os troncos úmidos e, por isso, muito mais escuros. Toda a paisagem ficara com mais contraste, realçado pela luz baixa da manhã. Passa um avião com barulho de motor antigo pelo ar imóvel.

O cachorro e o gato convivem. Estabeleceram limites e códigos para dividirem o território. Têm ciúme, como qualquer pessoa, é fácil se certificar. Os dois preferem a comida do outro, pode ser a mesma, mas mostram um interesse especial pela que está na vasilha do outro. Se dou atenção a um, o outro logo aparece, como quem não quer nada... Apesar de tudo, aprenderam a conviver, dividem suas jerusaléns e, no frio, dormem aconchegados um no outro.

Ontem, o cão deu um chega-pra-lá mais enfático no gato. Quando cheguei só consegui descobrir o motivo: comida. O gato já estava a salvo, mas com todos os pelos em pé e o coração a bater tão forte que se ouvia de longe. Nenhum sangue, embora desse para sentir na pele do bichano onde as marcas das presas do outro, vinte, trinta vezes maior. É óbvio, o gato estava todo babado e, o cachorro, igualmente perturbado por tudo. Poucos minutos mais tarde os dois bichos brincavam juntos. A tempestade passara.

Parece privilégio do Homem a raiva cultivada, o ódio alimentado a pão-de-ló, como diria o grande Nelson Rodrigues, ódio zelosamente paparicado para só se manifestar e exercer sua ação execrável com efeito retardado, fora do teatro da raiva, fora do tempo de ação-reação. O premeditar é demasiado humano, vergonhosamente humano.

 

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