Princesa


02/09/97

Sou um eremita. Já contei? Defeito genético, talvez - ninguém vira um ermitão assim, da noite pro dia, a troco de nada. A pessoa já nasce eremita. Olha ao redor, vê outras pessoas e abre o berreiro. O médico diz que é para encher de ar os pulmões. Que nada, é pura saudade da solidão do útero.

Com o correr dos anos essa solidão primordial se aplaca, para que se cumpra a recomendação divina inicial. Crescemos e nos multiplicamos sem jamais questionar as aptidões matemáticas de Deus. Neste afã, chegamos a parecer por um certo tempo, seres sociais, como os cupins, as formigas e algumas vespas.

Digo isso porque tornei-me dependente crônico da palavra. São as únicas visitas que recebo. Muito raramente, vêm vestidas de sons, no mais das vezes, como que para não deixar qualquer dúvida sobre nossa primazia visual, chegam como sinais iguais a estes, que nos unem aqui - eu e você, minha querida leitora solitária. Sim, dona Sabrina, hoje eu resolvi fazer a crônica em latim. Já disse até dependente crônico da palavra, não é mole, puro latim. Fica na sua e espera o ite missa est. Dependente crônico, pois tem sido a palavra escrita que me diferencia ainda da jabuticabeira ou do tronco morto e seus cogumelo-orelhas, incapazes de escutar. Pois, sons, há.

O vento murmura nas folhas Algumas aves trocam mensagens, avisam que vão dormir, que acabam de despertar. Existem borboletas capazes de estalar. E o relógio velho regula os quartos de hora de que já não dispomos mais. Chama-se Reguladora, fabricado em Portugal. Sim, há grilos, os de dentro e os de fora. Os grilos da noite e os do dia. Meros grilos, que grilam, como só os grilos sabem gritar. De muito em muito, passa um aviãozinho. Não se fala. Não há palavras no ar.

A síntese era furiosa nas palavras derramadas pelo correio eletrônico: "Queria imprimir uma camiseta com os dizeres: DEIXEM OS PAPARAZZI EM PAZ! Os únicos urubus que se dizem urubus. Os outros atendem pelo nome de pombinhas da paz. Que saco! A morte é sempre tão triste." Falavam da morte de uma princesa de contos de fada num conto de bruxos. Não vi nada na televisão. Ouvi apenas a voz emocionada do repórter, direto de Paris. Depois, veio nota da pomba mor: "O papa João Paulo II enviou nesta segunda-feira à rainha Elizabeth 2ª da Grã-Bretanha suas 'profundas' condolências pela morte de Diana, a princesa de Gales." As pequenas aspas, de profundas, vieram com a nota da Associated Press, não sei se postas ali pelo tradutor...

O papa João Paulo II não enviou, nesta segunda-feira, à nenhuma das mães que viram seus filhos morrerem de fome, suas condolências, 'profundas' ou não. O meu amigo não deve ter impresso camiseta nenhuma, com dizer algum. Os jornais de hoje têm outra "vítima". Talvez alguém queira fazer camisetas com frases contra o álcool ou em defesa dos motoristas. Ninguém vai querer saber porque se fabricam carros tão velozes nem por quê, no Brasil, morreram outras cento e trinta pessoas nessa segunda-feira, como morrem todos os dias, vítimas de automóveis, caminhões e parecidos.

Não sei da vida da princesa. Quase tudo que sei é que era uma princesa e, pelo que diz o Vaticano, de Gales. Tampouco sei exatamente o quê, ou onde, seja isso. E aí é que está: pouco importa, para todos nós, a morte de uma pessoa. A comoção que, provavelmente, quer o escalpo dos paparazzi é toda em torno de uma morte simbólica.

Por um momento tomamos consciência de que morreu a Princesa. Ponto. Aquela que as meninas sonharam ser um dia. Aquela que os meninos sonharam amar um dia. E com a morte da Princesa tomamos consciência, por alguns instantes, que o sonho morreu. A pureza daquela criança que amou a Princesa, que sonhou ser princesa, morreu também.

A agência de notícias informa que "o Santo Padre elevou suas preces encomendando-a ao amor eterno de nosso Pai celestial". Não diz se o padre santo voltou seus olhos para as milhões de crianças que, em breve, verão morrer seu sonho de Princesa...

 

|home| |índice das crônicas| |mail| |anterior|

 

14