Crônica do dia

Qüingentésima

22/10/03

"A mais alta e mais bonita era bonita quase demais. Olhos grandes verde-azuis, a testa redonda, bem feita, sobrancelhas escuras, espessas. A boca... bem, a boca sempre parece o ser mais difícil e, por isso mesmo, mais apta a trair a alma e o sonho de perfeição. A mais baixa, além de mais feia, começara e não parecia disposta a parar - eu nem li o jornal, olha só como tá tudo amassado, tudo bagunçado, o Darci é muito folgado. Isso é falta de respeito... - e ia numa torrente de reclamações, enquanto conferia o jornal, no aperto do metrô, tentando pôr ordem, ou descobrir se faltava algum pedaço. A bonita, da beleza quase perfeita, parecia nem ouvir e quem não observasse com muita atenção os cantos de sua boca, poderia pensar que ela, de fato, nem ouvia."

A crônica, o dobro do tamanho das de hoje, começa com uma introdução antes deste parágrafo e saiu 499 croniquinhas atrás, a inaugurar, em 18 de agosto de 97, há 2255 dias, esse rol de lacunas e imperfeições. Média: uma a cada quatro dias e meio.

Com o título "Metrô, sim. Paris, não" contava uma história real, tirada de velhas anotações depois de uma viagem no metrô de São Paulo. Como primeira crônica, trazia no título alusão ao então novo endereço do sítio: Paris/Metro/7783.

O tema é muito, muito mais antigo na vasta coleção de minhas obsessões: a beleza! O pomo de ouro, o poder, a maldição, a efemeridade! Escravo do olhar, do aspecto! Dependência absurda e absoluta da visão. Ver para crer e, pior, crer no que vê. Tema infindável a se prolongar no feio demais e todas as implicações e conseqüências para o belo e para o feio mas, principalmente, para a bela e a feia, por ser assim ou assado...

Quis o acaso que uma mulher bonita, de beleza quase perfeita, enfeitasse a primeira crônica. Hoje, sem mesmo lhe poder evocar o rosto, a retomo para fechar a qüingentésima.

|home| |índice das crônicas| |mail| |anteriortem carta... tem carta... tem carta...

2452935.500