desenho de Vicente Kubrusly [1978] crônica do dia

Ranheta ou ranzinza?

01/10/07

Outro outubro e o Trópico já se assanha na luxúria do avolumar-se da vegetação, do desabrochar de botões e do intumescer de brotos e eclodir de mil braços, lianas que se insinuam e trepam e abraçam, trepadeiras que entram e saem e envolvem e apertam e, por fim, a tudo em roda coroam, qual querubim traquinas a enlaçar seres em invisível teia e semear amores nas esquinas.

Tinha cabelos macios, abundantes, com cachos miúdos, louros, com uma tonalidade muito amarela e muito clara, incomum, a evocar anjo de desenho animado. Para completar a lista de defeitos, defeitos que outras mulheres detectavam de longe, era bonita e tinha um sorriso franco, lindo.

As mulheres têm, mais que os homens, a capacidade das lianas de insinuar-se, descobrir caminho e apoios, rumo à luz que precisam, economizar num tronco sólido e rijo, para se multiplicar, flexível, agarrando-se ora neste, ora naquele galho e galgar as copas mais altas, para reinar.

Que cor de olhos completava aquele rosto? A memória pode ser traiçoeira. A imagem que me vem tem olhos claros, mas de que cor? Verdes, azuis, água? Olhos claros naquele rosto seriam tão óbvios que poderia ser apenas o preenchimento natural de uma lacuna, como o aquarelista pegaria uma destas cores em sua paleta.

Conversavam noite adentro e bebiam com prazer o que diziam, pois não havia outro espírito além do que destilavam na conversa mas, fosse pelo excesso de palavras ou por sua falta, lá pelas tantas ela exclamou - Ranheta! - em tom definitivo, com voz e pontuação para ninguém ousar contestar e, após uma pausa e o vácuo, confirmou: ranheta!

O tempo escorreu e desfez a tensão, como ao bebedor de cerveja que alivia a bexiga. Alguém comentou: ranheta... primo do ranzinza... outro ponderou: mas... repara, ranheta é criança, velho é ranzinza...

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