Resgate dos grãos



08/09/97



Pediu um café e palitos. O garçom já se afastava, quando completou: - ah... e embrulha esse resto pra viagem. O garçom, que mal tinha virado a cabeça, para ouvir o resto do pedido, parou. Voltou à mesa, olhou demoradamente o prato que deveria levar para embrulhar: dois dedos de bife e colher e meia de legumes no azeite e alho... Tem toda razão, dona Sabrina, como letrinhas, também prefiro alho e óleo, soa melhor, mas apenas ao paladar auditivo... claro, querida, não só como, como cuspo letrinhas. Que tal uma sopa de letras?

Depois da contemplação dos restos, Severino olhou para O freguês e arriscou: - tem certeza que vale à pena? Veio meu café, acendi um cigarro e arrisquei um chute com meus botões - pelas aparências o salário do cara deveria ser pelo menos umas 20 vezes o do garçom. Ele queria as sobras. O garçom achava que não compensava. Pedi outro café, esperei o outro tomar o seu, pagar e ir, com o embrulhinho na mão. Chamei o garçom: - O que é feito da comida que sobra? Não titubeou, disse com uma ponta de orgulho: - vai pro lixo, direto pro lixo. E justificou: - aqui, não se reaproveita nada!

Ouvi que os restaurantes dos Estados Unidos jogam fora uma quantidade de comida capaz de alimentar 80 milhões de pessoas. Coisa de americano, tudo calculado na ponta do mouse. Passou na televisão. O repórter explicava que o problema era, em última análise, o que, para minha avó sempre foi ter o olho maior do que a barriga. Donos de lanchonetes explicavam que o tamanho do sanduíche é que atrai a freguesia . As imagens mostravam pilhas de pão e recheios impossíveis de morder. Mostravam pessoas, ensaiando a dentada. Oitenta milhões, apenas com as migalhas da mesa americana! Na certa, aqui, nunca fizeram as contas. Aqui, há cinqüenta anos, um poeta maior contou do bicho que viu catando comida no lixo: "O bicho não era um cão,/ não era um gato./ não era um rato./ O bicho, meu Deus, era um homem." Ah, Bandeira, não poderias imaginar 1997...

Eu e os outros. Espero que você, leitor, esteja esbravejando: - e você, cronista, o que faz? Pouco importam palavras escolhidas, letrinhas empetecadas. A comida de seu prato, os restos do seu jantar, hem, hem? Sim, porque já saiu até na televisão! Apontar os vícios da humanidade, é o que mais se faz. A julgar pelo que se ouve, vivemos no paraíso: o mal do brasileiro é esse e aquele... o que estraga o ser humano é isso e aquilo... é urgente se fazer tal coisa... as autoridades deveriam... o governo não vê... Eu e os outros. Afinal, não preciso me incluir, que diferença faria, de um ponto de vista meramente estatístico? Para mim, quero do bom e do melhor. Não é para isso que me mato, como um idiota, todo santo dia, de casa para o trabalho, do trabalho para casa? Eu, e os outros.

Eu sou a humanidade. Você é a humanidade. Meu vizinho é a humanidade, o seu, também. A princesa que morreu é a humanidade. O bicho que Manuel Bandeira viu, é a humanidade, o poeta, também. Suponha que uma célula qualquer de seu corpo se decida cansada de cumprir seu papel - digamos, de produzir um hormônio qualquer. Ela raciocina: o corpo tem mais de um trilhão de células, portanto, tanto faz como tanto fez... imagine, agora, que outras células, ali por perto, vendo a boa vida da companheira, resolvam imitá-la... Não sei quantas células tem um corpo humano, quantas a humanidade. Mas é certo que esse grande corpo de que somos células, dá visíveis sinais de múltiplas doenças.

Os pais, japoneses conheciam a fome. Os filhos, nascidos no Brasil, não. Como são as marcas e cicatrizes dos pais, que moldam a educação dos filhos, naquela casa, cada refeição terminava com um verdadeiro resgate de grãos. Não era permitido sobrar no prato, sequer um único grão de arroz. E foi fácil convencer as crianças: quando sobrava, um grãozinho, um só que fosse, o mesmo prato voltava, do mesmo jeito, para a próxima refeição. Claro, era guardado na geladeira ...

Quem quer comida reciclada?



 

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