'Meu primeiro desenho' by  Anucha [1991]

Retalho de lembrança

10/06/10

Certa feita, ainda nos prenúncios dos anos sessenta, das areias escassas do Posto Seis, testemunhei com meu irmão, sob o generoso sol carioca, uma cena banal, indigna de registro, que, ainda assim, me marcou a ponto voltar-me meio século depois.

Deitados na areia fina de Copacabana, entre os raros banhistas de um dia de trabalho, ouvimos um pregão anunciar abacaxis e a cantoria do negro, nigérrimo e atlético vendedor, apenas um vulto distante contra a reverberação de céu, areia branca e mar, aguçou-nos a vontade de meter dentes na carne doce e macia da bromeliácea e babar.

Estava ainda longe o pregoeiro, com um grande cesto redondo e raso na cabeça, quando corremos a contar os poucos trocados que sobrariam depois de separar o necessário para o bonde da volta, malgrado houvesse sempre a hipótese de viajarmos sem pagar, atentos ao cobrador nos estribos e mudando de lugar no bonde, conforme a necessidade.

Ao chegar perto o vendedor de abacaxi, perguntamos o preço e constatamos insuficientes nossos recursos, diante do que, declinamos da compra insinuada na pergunta. Ato contínuo, o negro - de pele fosca, em contraste com outras, de brilho azulado sob o sol forte - seguiu a caminhada na areia quente, com o cesto trançado de grossos cipós escuros e repletos da fruta cobiçada cantarolou consigo: "Chora, doutor, chora, o medo de ficar pobre lhe apavora".

Por que guardaria a memória por tanto tempo uma bobagem dessas, retalho de lembrança sem outra importância além do provável impacto emocional de então?

Hoje, a notícia da instalação de uma rede de tevê ligando os quiosques das praias cariocas trouxe nítida a cena daquele banho de mar, defronte à tevê Rio, que não existe mais, próximo de um recanto sombreado por amoreiras, onde alguns pescadores guardavam barcos e estendiam redes.

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