RONDA DE TODA MENINA

Sempre intuí a Ronda,
a Ronda de toda Menina.
Porque misturar todas -
as poucas que posso lembrar -
é jeito meio oblíquo
de rodear o mistério
e deslumbramento,
abstrato da Mulher.

Um jeito meio esquisito,
de tentar compreender
o enigma por trás de um rosto,
o desafio, a provocação
de um certo jeito de olhar,
a reação banal, animal,
que um pedaço apenas de corpo
tem o poder de provocar.

Sentir, nas entranhas de homem,
a irresistível hipnose
anestesiar o racional
e baralhar os pedaços
sabidos, ou não, de nós.
E ver o guerreiro
com marcas de luta
e cantos de glória,
sucumbir como idiota
à imagem da Mulher.
Entorpecido na química -
idólatra instintivo -
do apelo primordial.
Criando deusas, virgens
e prostitutas,
de fragmentos de sonhos,
pedaços, miragens de mulher.

E cada menina,
em cada momento
cutuca certeira
aquele tendão
dos tantos Aquiles
que somos, ou não.

Enormes bolas de gude,
olham e iluminam Você.
Nas cores, os lápis todos da caixa
irradiam tanta alegria
e escondem todo mistério.

Mas, alguma barreira se esgueira -
fica a fome imaginada,
a sede nem saciada.
E a mesa opulenta
espera os mendigos
que Cristo trará.

Quem é essa mulher?

Fio de dentes atrapalhados
no sorrir iluminado
entre risos e sorrisos
e cada sorriso é um:
às vezes, tímido, acanhado,
quase desculpa de rir;
outras, na explosão poderosa,
inexplicável, da fisionomia -
mistério que aprendemos sem saber.

De que se ri essa mulher?

Cabelos! Lisos, escorridos!
Cachos encaracolados!
Cabelos!
Poderia ter-me apaixonado
por uma peruca, talvez?...
Fiapos em traços de nanquim
dourados pelo sol
unidos pelo mar.
Gruta movediça!
Que monstro dorme
no fundo de ti?

Que mulher, escondem esses cabelos?

Essa coisa que insinua e oculta,
clama e cala ao mesmo tempo
e diz não, e quer dizer sim
e diz sim - ou nem diz -
e sussurra calada
no olhar que desmente
o que a boca calou,
ou na boca que mente
o que o olhar suplicou.

Quem é essa fada?

A Vida se fabrica em ti
A Vida se apossa de ti
se esparrama à revelia
e inunda e esbanja,
generosa e descuidada.
Fonte inesgotável
do eterno milagre
que é o brotar.

Não importa quem é.

No palco de minha alucinação,
sob o spot implacável
e cruel da Razão,
retomo o desfile de cada uma
no canto que tento há tanto
e escapa e some, como a Mulher.
Em outras quadras, outros ares,
quis dar a você, que tantas foi
a voz e o cetro que me faz réu:

"Suspensa dos sonhos de Eliseu Visconti,
a penumbra enche o teatro vazio.
O primeiro spotlight
acorda a orquestra
num bocejo espichado.
A rotina dos ritos repetidos
reflete nos ventres de cobre dos tímpanos
a reverberação de fantasmas
desgarrados de outras épocas,
intocáveis como bolhas de sabão.

O facho azul titubeia
tateando a escuridão
e materializa
na amurada de pedra,
batida de mar,
a primeira aparição:
no palco vazio, o tempo distante -
o movimento primeiro."

E permanece o enigma de cada mistério
com o cheiro mais insuportável
do bolor de tantos séculos -
cinzas que a memória teima em reter.

E da turba enorme que supus,
só três, timidamente, no palco
hipotético souberam entrar.

Onde, a permissão para materializar
cada menina, cada fragmento perdido,
cada lição esquecida, cada pedaço roubado,
cada tesão passageiro, cada efêmero aconchego,
toda menina bonita, feia, esquisita,
em que se transforma a cada instante
a única minha menina
dessa Ronda sonhada e impossível
que acreditei intuir e cantar,
mas que cala a voz em meu peito
e diz que é melhor parar?

Existe alguma mulher?




18/12/93







mais um?

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