Sonho de Adelaide



15/12/97


Adelaide conseguiu galgar a ponta da língua apesar do absurdo e da saliva. Sabia que era isso que devia fazer. A enorme boca evocava uma catedral, com todos aqueles dentes pendendo do teto e espalhados em fila, à roda do chão. Ao fundo, em vez do altar, a terrível garganta mergulhava na escuridão. Como num rito muitas vezes repetido, ela se encaminhou para o fundo e escorregou goela abaixo.

O primeiro disse oi, o segundo, oi Alice, já que ela surgia com seu apelido e um sorriso que pegou na prateleira de utensílios. Os outros a saudaram com seus cacoetes e Alice também sorria e respondia a cada um, procurando em sua bolsinha de utilidades essa ou aquela mania para exibir a cada qual. Alguém a levou para um aposento mal iluminado e sussurrou, para que ninguém mais ouvisse: você está mais linda que nunca... Verdadeiro disparate, já que ninguém podia ver ninguém, de fato, ali. Mesmo assim, Adelaide na pele de Alice se sentiu mais bonita, talvez pela magia das palavras de quem não a viu, talvez porque mesmo mentira sendo, elogiar a beleza da mulher mexe em arquétipos que, a qualquer homem, é vedado sentir e compreender. Alice tirou, pois, o mais lindo sorriso que achou em sua bolsa e o fez resplandecer, ornado com estrelinhas que eram meros asteriscos... As pessoas procuravam desesperadamente qualquer assunto... Aquele era um lugar onde o silêncio imitava a morte, importava falar. Havia, é claro, um ou outro voyeur! Lá, onde era impossível ver qualquer coisa além de letras enfileiradas, que chegavam devagar, repetitivas e traziam pedaços de conversas em forma de palavras e sinais de um código precário, que deveria ser visto tendo a linha escrita como eixo vertical! Ainda assim, algum voyeur poderia calar e se esforçar para acompanhar um diálogo que se perdia em mil pedaços, fora outros, que faltavam, já que parte do que se dizia ficava mesmo escondida por artes e manhas dos feiticeiros desses bate-papos!

Alice, já esquecida de Adelaide, não conseguia mais ler tudo que todos falavam e, nem mesmo dar a necessária atenção ao que só para ela diziam. Acendia outro cigarro, apesar do que já queimava no cinzeiro e procurava responder a todos, nas falas estipuladas de gritos, sussurros e murmúrios com possibilidades, até, de xingar, concordar ou discordar. Fora os segredos é claro, que dizia apenas para um, sem que os outros pudessem escutar... Suas respostas ficavam cada vez mais sintéticas e, quando queria, mesmo, falar alguma coisa, adiava, no meio de um verdadeiro bombardeio de mensagens que a fazia sentir-se amada, odiada, desejada, gozada, boba, sagaz, iluminada e por aí afora, tudo ao mesmo tempo, tudo volátil, enigmático, apenas insinuado mas muito capaz de muito entorpecer, tal qual a roda gigante, sem funcionário com a mão no freio, nas voltas de luz azul, do azul de neon e a nave boiando no parapeito da janela onde vem beber água, o beija-flor...

Adelaide, Alice, Renata, Regina e mil outros nomes de mulher, abriu de repente os olhos escuros, olhos verdes, olhos d'água, que são lindos sempre os olhos, quando se quer e viu um texto enorme, daqueles que o livro de boas maneiras das salas de bate-papo, da salas de chete, livro que ainda deve estar por se escrever, preconiza que não se deve usar, para não abusar da paciência alheia, viu Alice, Renata, Regina, que era Adelaide afinal um texto enorme e esdrúxulo para aquele sonho e lugar: "Tempo! Tanto tempo... tantos tempos! Ele, ainda poderoso, sabe ter as rédeas nas mãos: a bacanal divina acabou - como é forçoso acabar toda e qualquer bacanal - eternas, seriam insuportáveis! Sobram os destroços, as marcas, as rugas, o corpo alquebrado, a certeza da limitação: aqui, agora. Apenas agora, apenas aqui. De todas as horas, de todos os tempos, Apenas agora. De todo lugar, de tantos espaços, Apenas aqui. Onde, os deuses que pressenti? Em que espaços, em que eras dormem tantos fantasmas alegres, que num relance, entrevi? Ainda posso sonhar, mas esqueci meus sonhos. A cidade é real e barulhenta e não leva a lugar nenhum. O mar está longe, apenas pensado, sem cheiro ou ruído nem, sequer, repetido... Perdi meus sonhos longe do mar... E a Mulher, a deusa sabida, jamais encontrada, de fato, nunca existiu. É real o motor que ronca, o barulho de mil motores. Sinfonia de tantas vidas e almas vendidas, talvez, sem nunca cogitar uma explicação. A árvore está ali apenas porque foi ali e em nenhum outro lugar, que a semente caiu. E novas sementes viajarão em outros vendavais. E novas tormentas ceifarão outras árvores e os coqueiros se inclinarão embriagados das espumas e da fúria do mar. E água e vento modelarão de novo a mentira sonhada num corpo de mulher."

A enorme boca fechou-se e engoliu em seco. Adelaide acordou com um grito de pavor.

 


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