Crônica do dia

 

Universal

08/03/06

O sol não vara, de todo, a bruma que tolda o longe. A luz difusa e tênue tem uma qualidade que o fotógrafo só imita em estúdio, e mal, com grandes trambolhos. Há um silêncio quase inexplicável. Como flechas verdes, maritacas chegam e tomam o abacateiro carregado de frutos e a paineira, de flores. Apenas murmuram, gorjeios que mal se podem ouvir. Há flores e frutos de todas as cores e sabores. As folhas, em maioria, jazem no chão.

Copiei letra por letra parágrafo com que Apuleio inaugura um dos mais antigos e famosos contos, fonte de milhares de outros, em tradução primorosa de Aurélio B. de Holanda Ferreira e Paulo Rónai e o fiz para sublinhar, hoje, a beleza da Mulher. Mas o dia chegou em traje da gala e até as maritacas me pareceram se calar diante daquela que é fonte de toda vida e, o Sol, despiu de leve o manto de brumas e fez azul o céu e pôs um brilho em cada folha, em cada flor, em cada gota até a evaporar.

Eis, pois, como começa o conto Amor e Psique:

Havia em certa cidade um rei e uma rainha que tinham três filhas de conspícua beleza. As duas mais velhas, embora de lindíssimo aspecto, podiam ser condignamente celebradas por louvores humanos, ao passo que a humana linguagem se mostrava incapaz de descrever, ou mesmo de suficientemente exaltar, a extraordinária formosura da mais jovem. Muitos concidadãos da menina, e bem assim grande número de curiosos forasteiros, atraídos da fama de tão singular espetáculo, pasmavam ante aquela inexcedível beleza e reverenciavam-na com religiosa adoração, levando a mão direita à boca e apertando o índice de encontro ao polegar, tal como se venera a deusa Vênus.

foto do autor [1960]

Se o fascínio diante da tentativa de descrever beleza devastadora como a que aqui se canta me levou à cópia, agora a história milenar de Cupido e seu casamento com Psique e, sobretudo, seu simbolismo, se impõem.

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