Crônica do dia

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24/02/06

Ela chegou de mansinho e trouxe uma braçada de flores amarelas. Ele não lembrava de ter recebido flores antes. Olharam-se muito e falaram pouco. Foram direto para a cama antiga, com colchão de capim, incapaz de esquentar sob o calor dos corpos. Não se viam há muitos anos e o envelhecimento surpreendia aos olhos de cada outro. Ele perguntou se queria fumar. Ela respondeu com um gesto e ele pegou o cigarro adrede preparado para a ocasião e o fumaram devagar, até o basta. E devagar também começaram a se pegar. Agora, a marca do tempo surgia, implacável, aos dedos. Ela continuava bonita sim, bem bonita.

A tarde correu quase imperceptível, como a mudança da luz, a se esmaecer e se dourar para bater enviesada sobre a cama de casal. Sim, tinham ido para outro quarto e despido toda cerimônia inicial. Agora, parecia se conhecerem desde sempre e enquanto ela contava segredos em poucas palavras ele falava por gestos e atos e os olhares se entendiam mudos a aprender um com o outro, sem pressa.

Na noite escura, descobriram a fome e riram de sua imensidão. Sem nada ali para comer, saíram em busca de outro apoio que não fosse um para o outro e, vorazes, devoraram um boi, embora fossem apenas sanduíches de mortadela de padaria vagabunda mas, no ali agora, valiam boiada e meia e lambiam dos beiços a espuma grossa de boa cerveja, um do outro. E se olhavam com olho-de-peixe, nariz com nariz. Bebiam-se com o olhar recomposto, assassinos de muitas fomes. Não precisavam sorrir por fora.

Ela se foi e, ao voltar, ele viu flores amarelas jogadas e atadas pelos talos, meio murchas. Não eram de muito perfume, pareciam mais flores de se ver. Enfiou-as num balde com água e se perguntou, como sempre se perguntava, para que amputar um órgão da planta se não é para comer. Jogou-se nu na cama desfeita, perfumada pelo corpo dela.

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