Teste vocacional


25/08/97

Acho que vou fazer um teste vocacional. De quebra, peço lá para medirem meu queí, como troco. Sempre desconfiei tanto de um como de outro. Mas agora me vejo à beira dos sessenta, sem conseguir descobrir o quero ser quando crescer. Diante dessa verdade implacável, torna-se recomendável medir, também o grau de burrice, como medida preventiva. Consola-me, apenas, saber que não sou a única vítima dessa síndrome.

Outro dia tocou o telefone. Era um amigo na fase aguda do mesmo mal. Depois da introdução de praxe, intermezzo, cadência e da capo al fine, começou, num attaccato sostenuto molto espressivo o segundo movimento. Disse que, quando jovem, pouco estava se lixando para ser rotulado disso ou daquilo. Fazia o que dava na telha, e pronto. Quis voar de asa delta, por inveja de Ícaro e até de Pégaso, meteu-se lá com os outros loucos e ficou pulando do alto da pedra, em contemplações que só às aves é dado ter. Mostrei a meu amigo que sua situação era muito melhor que a minha, já também eu tinha tido meu namoro com a idéia desses vôos, mas se uma única vez pude deleitar-me com a liberdade dos pássaros - e diga-se, liberdade, no meu caso exclusivamente visual -, só pude gozá-la em sonho e, assim mesmo, uma única vez.

Nada consegui. Meu amigo continuava triste e deprimido porque, agora, invejava as pessoas que, desde pequenas sabem o que querem ser e são aquilo que sempre quiseram. São seres explícitos. Entre no consultório de um advogado, um dentista, um médico ou um psicólogo. O que se vê? A primeira coisa? Está lá, emoldurada e pendurada diante da porta de entrada, talvez para que ele mesmo não esqueça jamais aquela verdade, a prova. Assinada com pena de pato, com sinete de monograma em lacre, em alto-relevo, como usavam os reis, o atestado de que se é. Os jovens zombam e chamam de canudo mas, por via das dúvidas, correm atrás. E quem não pode obter um canudo importante, procura um canudo secundário, que os há aos borbotões. Até curso de boas maneiras promete um diploma no final.

Vocês dirão: "ora, isso é apenas em relação ao lado profissional e uma pessoa é muito mais que sua profissão." É, e não é - ou melhor: deveria ser, mas não é. Não é porque, no fundo, nós acreditamos terrivelmente nesses rótulos. Não sabemos olhar para uma pessoa e continuar com o fato, apenas, de estarmos diante de um ser humano. Não suportaríamos o juiz implacável que se esconde em nós, em cada um de nós, se tomássemos consciência da quantidade de sentenças proferidas em poucos segundos, quando um estranho nos é apresentado. Tudo está sob julgamento. Começa pelo aspecto, do rosto - importantíssimo! - e do resto. A voz, a fala - em tom e conteúdo -, os gestos, as roupas, tudo - tudo está sendo avaliado instantaneamente, automaticamente, sem qualquer esforço de nossa parte. Se possível, queremos saber, onde mora, o estado civil e, é claro, a profissão.

Lembro uma amiga que entrava em colapso nervoso agudo. Os olhos paravam, vitrificados. Os cantos dos lábios sofriam uma contração quase imperceptível, e os próprios lábios se tornavam mais finos e de um belo amarelo, cada vez que ouvia a pergunta "qual é sua profissão?" Ah, vocês não podem imaginar o sofrimento que pode provocar, para certas pessoas, dizer o óbvio: "nenhuma, sou rica, bonita e cada dia faço o que me dá na telha, naquele dia." Vocês não vão acreditar, mas há gente que passa 30, 40 anos fazendo exatamente a mesma coisa, dia após dia. Bom dia, dona Lurdes, e sobe, todos os dias, pelo mesmo elevador. Bom dia, seu Anacleto, ontem meu café estava frio. Bom dia, dona Hermínia, bom dia, dia após dia, de São Paulo para Cotia pela mesma rodovia.

Acho que vou fazer um teste vocacional, agora, que me vejo à beira dos sessenta. Pode dar que nasci para ser rico, jovem e bonito, encontrar uma princesa virgem e casar. Aí, poderíamos viver felizes para sempre...

 

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