No princípio Deus fez a Mulher, pois que, onipotente, não começaria por ninharias. Fez, olhou e gostou. Usou do bom e do melhor em sua obra primeira, obra duas vezes prima, em bom latim. Sabia que a matéria-prima escasseia e o artista se amua e a inspiração se dilui nas atmosferas que emanam das próprias criações. Antes de tudo Deus fez a Mulher. Esculpida em formas nunca vistas, óbvio, adornou-a o Todo-Poderoso dos atributos mais finos de sua oficina tornando-a tão desejável quanto possível. Estimulado pela própria obra, demorou-se a condimentá-la com as mais perfumadas e picantes especiarias - profética antevisão de Caymmi a receitar vatapá: uma pitada de astúcia, outra de malícia, o dom da dissimulação e um riso fácil e descabido - "um pouquinho mais" disso, daquilo, "um pouquinho mais". Pronta, quedou-se embasbacado o Padre Eterno, em contemplação de seu feito, enfeitiçado da graça, trejeitos e fingimentos da criatura a bailar através do vácuo infinito de uma eternidade mergulhada em caos. Satisfeito como qualquer mortal, que faria à sua imagem e semelhança, Deus se reclinou sobre si em divino repouso eternidade afora. Ledo engano, pois tanto bastava: feita a Mulher, teria o Universo!
Logo, ela veio ter com Ele e disse: Senhor, para que me destes olhos se nada vejo nessa escuridão? Por ponderar razoável o rogo, disse o Senhor: exista a luz, e a luz existiu. Separou a luz das trevas e a chamou dia e, às trevas, noite. No segundo dia, voltou a Mulher e disse: Senhor, perco-me em um mundo sem pé nem cabeça. De novo o Senhor viu razão no reclamo e separou as águas. Criou o firmamento etc... Assim, dia após dia, a Mulher, anima do próprio Deus, dirigiu dos bastidores o espetáculo desde o princípio. Seu erro se deu quando, tomada de desejo que não soube compreender, rogou que o Todo-Poderoso lhe desse um companheiro...
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