O policial chegou coçando o quadril para deixar a mão próxima ao coldre. Sempre usava esta precaução contra qualquer eventualidade. Abaixou-se junto à janela do automóvel para interpelar o motorista mas, após um instante, sorriu e, depois, riu. Compreendera num relance que a morta nunca nascera... E assim o compreendera principalmente ao ouvir o repórter adjunto - hoje, toda investigação policial implica na concomitante reportagem - exclamar com empáfia sua manchete idealizada: 'A morta que nunca nasceu'! O repórter exultava. Riam-se os servidores da lei e da informação ante a constatação de que ali, num posto de gasolina de beira de estrada, a obra de arte se assenhoreara da vida como personagem mais real que as pessoas de carne e osso.
A Pessoa, personagem de plástico e peruca e roupas e tintas, manequim de cara de látex e longos cílios insinuantes - e não manequim gente que percorre passarelas como autômato - a tal Pessoa, foi posta, apenas para fins de transporte, no banco do carro, ao lado do motorista, aonde vai, de comum, a namorada.
Foi mais fácil carregá-la assim da galeria de arte para o ateliê. Ao parar para abastecer o veículo, a Pessoa olhava pela janela do carro e logo surgiu dama zelosa e arguta, que imaginou morta a pobre mulher e ligou na hora para a polícia, dedo em riste a apontar um possível crime. Como, levar assim, impudente, um cadáver em plena luz do dia e ainda ter a cara-de-pau de parar para pôr gasolina!?
a Pessoa, de Luciana Guidorzi; máscara de Luciano Almeida
Aconteceu ontem, numa estrada vicinal de São Paulo, quando a Pessoa, cuja alma se resume a uma máscara de látex - a palavra pessoa vem de máscara! - ia de um município a outro, no carro, como se descreveu.
Tenho para mim que tudo é fruto da curiosidade inevitável com que uma mulher analisa e decifra outra. Desta capacidade inata que transforma, no primeiro encontro, cada outra em inimiga potencial.
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