'Meu primeiro desenho' by  Anucha [1991]

A morte da barata

03/01/13

Acende a luz do banheiro. Sem pressa, uma barata perambula pelo chão. Ele dá um passo atrás, como para sair do caminho do inseto, que muda de rumo sem aumentar a velocidade. Ele cogita: deve ter vindo do ralo; na certa a água de vedação se evaporou, abrindo caminho à periplaneta adulta - suas asas são bem desenvolvidas - que não demonstra medo do predador dos predadores, ali, gigantesco a olhá-la em seus movimentos exploratórios iniciais e, certamente, ignorando a rivalidade milenar das duas espécies, cultivada pela astúcia de um cérebro ardiloso... A barata muda de novo seu rumo, agora, se dirige a porta. Ele teme que ela saia do banheiro, onde controla a situação. Surpreendentemente, o bicho não sai correndo - e como correm as baratas quando o querem! - mas continua a perscrutar o ambiente, analisando, provavelmente, odores inexistentes para o limitado olfato humano. Ele associa este pensamento ao fato de ter preparado, há pouco, o jantar. Talvez o cheiro da boia a tenha atraído para fora do ralo, supõe. No limiar da porta, o blatídeo se vira rumo à pia e segue seu caminho com calma e vagar. Súbito, ele é tomado pelo instinto da espécie. Pondera: não conviverei sob o mesmo teto com esse ser, malgrado ela seja tão espetacular quanto ele como obra da vida... aquela que é bonita e o deslumbra todos dias... Aí, se lembrou de uma empregada de sua mãe, que teve o cantinho de um dedo da mão, perto da unha, roído por uma barata enquanto dormia, pelo que ela contou... Não, não queria dividir sua toca com aquele inseto ortóptero, por mais que lhe fascinasse a entomologia... Com delicadeza, pisou na barata. Imediatamente, se sentiu um canalha por acabar assim, cheio de covardia, com uma vida que vicejava em seu chão... Imaginou, então, escrever uma crônica sobre a morte da barata, como confissão.

January 3, 2013 8:30:46 AM GMT-02:00

Passo pelo mesmo dilema moral. Considero que os seres abaixo dela na escala de tamanho/massa é que são os verdadeiros inimigos, mas ai lembro que ela é um coletivo deles. Um verdadeiro busão de micro-organismos. E ai o pé vai, antes mesmo da ação se tornar consciente. Para sorte dela , a idade tirou bastante da agilidade e precisão necessárias ao extermínio mecanico. O suficiente para elas escaparem quase na mesma proporção em que morrem. Minha mãe dizia dos que estavam desacordados nos leitos de hospital: "Está entregue às baratas..." Chinelo nelas!!!

Abração

Ebert

É verdade, elas escapam muitas vezes pela ineficácia exterminadora imposta pelo tempo... O tempo é implacável e, de certa forma, indecifrável.


January 3, 2013 9:55:40 AM GMT-02:00

Querido Clode, feliz ano!

Acredita que sonhei com baratas esta noite?
Éca...

Adorei o texto. Como sempre, parabéns!

Beijim

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Obrigado. Que 2013 seja melhor do que 2012 e pior que 2014.

Acredito. Os sonhos são bons companheiros, mesmo quando usam em seus simbolismos esses insetos tão execrados, mas só você pode pescar neles algo proveitoso (são seus, são você!).

Que bom que gostou e tem gostado e, mais uma vez, obrigado.


January 3, 2013 10:21:46 AM GMT-02:00

desculpe, mas não vou ler, mal consigo chegar ao fim do título

      sem assinatura

Não precisa se desculpar por isto. De gustibus et coloribus non disputandum, você sabe.


January 3, 2013 2:10:42 PM GMT-02:00

lindinho vc
será q dava pra levar ela lá pra fora?
conviver com o blatídeo (nunca tinha ouvido essa palavra) não seria possível ...


bjs
Maren

Outro dia, fui pegar um vidro de boca larga para fazer isto e a barata correu para baixo de um móvel. Acabei jogando inseticida ali... Não se vive sem matar, ou melhor, os animais não vivem sem matar.


January 3, 2013 3:28:09 PM GMT-02:00

Ah...

Lembro, sim, o lance da barata que roeu a mão da mãe...

Ficou sonoro, né?: a mão da mãe.

Título de algum conto pelaí... enquanto Kafka passeia em alguma rua escura.

bjos, meu irmão

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Não foi da mão da mãe - belo título, maninho - foi da mão de uma empregada da mãe...

Gostei da rua escura e seu personagem kafkiano...


January 3, 2013 4:19:41 PM GMT-02:00

KKKk adorei.
bjs

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Eu também, que você tenha adorado...

o gif não anima no e-mail, né?


January 3, 2013 7:30:11 PM GMT-02:00

Oi Clode

Argharghagagagagaaaaaaaa eu odeio baratas...
Quando consigo matar alguma, me sinto a mais poderosa mulher do mundo!
Mas, às vezes, quando elas me assustam, eu começo a gritar e a pular, elas começam a correr, eu acho que ficam com medo da louca, que sou eu!Acho que eu a assusto!
Muito divertida a sua cronica!

Eu não tenho nenhuma culpa em matar estes seres feios, inferiores, insuportáveis!

beijos e feliz 2013
acabo de chegar em casa, de volta de Parachuva!

MHelena

Alguma vez você já comparou os tamanhos, a massa - o seu peso e o dela, barata? É comum esse pavor de baratas, sobretudo o pavor feminino - minha mãe quase não se casou por causa de um 'chilique', ante de uma barata que apareceu no trem, minha irmã e sua filha igualmente abominam o pequeno inseto (ela nem quis ler este texto!) - tão comum essa reação de começar a gritar e pular, como se de fato um bicho tão pequeno pudesse oferecer algum risco a um ser humano, que imagino, em nosso passado remoto, nas cavernas, talvez, terem as baratas de fato ameaçado, de algum modo, a humanidade... De todo modo, é melhor matar baratas que pessoas.


January 3, 2013 11:34:37 PM GMT-02:00

Clode, começar o ano com essa crônica é supor que 2013 vai ser um ano interessante e muito divertido. Merci ,bj e um ano com muitas outras croniquins como essa.

      sem assinatura

Oxalá suas previsões se realizem! Interessante, além de divertido, é muito bom. Tomara!


January 4, 2013 8:02:50 PM GMT-02:00

Clode,


Adorei sua crônica de terror, heroísmo e compaixão.


Você foi lá e pá! Matou a barata. Saiba que não é pouco. Mesmo com nosso tamanho, conheço muitos que não tomariam essa atitude. Eu mesma, não mato barata, só com armas químicas. Tive 3 maridos, só o último mata baratas sem hesitação. O primeiro me ensinou a usar 'armas químicas'. Já foi um avanço, melhor que sair gritando pela casa. O segundo fingia que não era com ele, pois sabia que eu ia logo pegar o inseticída. E finalmente o Claudio, mata, simplesmente. Baratas, moscas e mosquitos. E, importantíssimo, some com o cadáver.


Mas você foi além, muito além.


Voltei a andar pelo seu sítio. Li várias coisas sobre a enfoco. Eu conhecia só de ouvir a Maria Helena falar. Ela foi aluna. Acho que aquela fase da vida dela foi muito importante.


Vi novamente fotos antigas. Será impressão minha ou a Maria é bastante parecida com a Tia Emilinha? Todas duas muito lindas.


Beijos


Lucia

Sabe o que acho, seus comentários superam, e muito, a crônica - são deliciosos!

Agora, devo esclarecer que sempre matei sem pensar baratas, moscas, mosquitos e outros bichos. Parecia-me natural matar tais 'inimigos'. Só na velhice surgiu a compaixão, a consciência de todo animal, necessariamente, matar para sobreviver e o questionamento de por que a minha vida vale mais do que a de uma mosca, por exemplo. E, também eu (mal do nome?) não deixo rastros de minhas matanças.

Sim, a Maria Helena foi aluna e monitora da enfoco (um 'milagre' em plena ditadura, um dia, conto). Talvez tenha sido muito importante para muito mais gente, incluindo-se aí, Anucha e eu. Por isto chamei de milagre, algo que deu certo sem ter nada para tanto.

Sabe quem acho a mais parecida com minha mãe, a Maria Helena, sobretudo agora, mais velha.


January 5, 2013 2:13:35 PM GMT-02:00

  Muito bom.Valeu a confissão!
 Bjo

      sem assinatura

Afinal, a isto se propõe o cronistaprendiz: descrever o que vê, o que sente capaz de provocar emoções...

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