Lembranças da infância mais remota inexistem ou aparecem misturadas a fantasias e outros produtos da livre imaginação. O fio lógico, narrativo, a possibilitar encadear um fluxo coerente desaparece ao relembrarmos os primeiros anos de vida. Restam apenas flashes, difíceis de encadear. Procuro a história por trás desses instantâneos e nada encontro. Só momentos avulsos. Na primeira cena, alguns meninos sentados em um banco da escola pública, conversam sobre os castigos infligidos por seus pais. "Meu pai faz assim e assado...", "o meu faz pior, e passo por isso e por aquilo..." - parecia existir uma disputa: venceria a vítima de maior atrocidade! Lembrei-me, então, de uma ameaça "terrível" ouvida de meu pai: "da próxima vez, será com fio elétrico", prometeu-me ao final de uma surra "comum" de régua ou cinto, não lembro. (Naquela época o senso comum aceitava sem muito questionamento correções com castigo físico para fazer das crianças adultos "bons, corretos e cheios de virtudes".) Vi, então, naquela ameaça, uma chance para vencer a "disputa de vítima maior" e menti: "meu pai me bate com fio elétrico", contei com ar triunfal. O recreio acabou, esquecemos as bobagens a nos entreter e voltamos às aulas. Cena dois: passados um ou dois dias, à mesa do almoço ou jantar, meu pai me pergunta de supetão: "quer dizer que o seu pai lhe bate com fio elétrico?" As lacunas mnemônicas me omitem minha real reação. Com o desenrolar do assunto, entendi: meu pai soubera de minha mentira por um menino da vizinhança. Ele perguntou se era verdade e o guri nem era aluno daquela escola! Em seguida, ouvi novas ameaças, desta vez pela mentira (e difamação do pai, eventualmente): "agora vais apanhar de fio elétrico, para deixar de ser mentira o que falaste"... O fato concreto: jamais fui castigado com uma surra de fio elétrico. |
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