Buñuel dedica um capítulo inteiro de "Meu Último Suspiro" ao Acaso. O Mistério entra como coadjuvante, é certo e ambos aparecem assim, com maiúsculas, como entidades autônomas e cheias de poder. Não, dona Sabrina, o último suspiro é dele, não meu! É "Meu Último Suspiro" dele, dá pra entender? No livro, ele conta que sempre imaginou um filme onde a trama fosse escrita pelo dedo do destino numa sucessão de acasos. Para exemplificar, imagina um multimilionário que joga fora uma ponta de charuto, pela janela da limusine. Um mendigo, ao ver o charuto, precipita-se para pegá-lo e é atropelado por outro automóvel. Morre...
Todos nós já nos perguntamos se os acasos são apenas acasos ou se algo misterioso e indizível se esconde por trás das coincidências de tempo e lugar. Por que tal coisa acontece nesse exato instante ali e, não, acolá? Jung se interessou tanto pelo assunto que criou o termo sincronicidade - que o Aurélio ainda não registra - para definir essas "coincidências significativas", como dizia. Porém, dizer que têm um significado especial já não é elegê-las além do acaso puro e simples, banal? O discípulo de Freud não só criou o termo como escreveu um pequeno livro com este título: "Sincronicidade". Tentou clarear com a razão, aquilo que, manifestamente, não é racional...
Ficcionistas em geral, bem intencionados, ou não, costumam declarar que toda semelhança é mera coincidência, certos de que o acaso tudo pode e tudo pode se explicar pelo acaso só. Diante de um desses acasos, de uma dessas "coincidências", podemos achá-las significativas ou, simplesmente dizer: "mera coincidência..." - e esquecer, pelo menos no nível mais superficial da consciência, na esfera de nosso instrumento mais à mão - o raciocínio, a razão. Já nos níveis mais profundos, naquilo que mal podemos controlar, parece difícil esquecer. Permanece uma pergunta meio indefinida, uma inquietação, um enigma ou desafio sempre a roçar...
Algumas pessoas proclamam o livre arbítrio como o chilique dum imperador mimado, num repente para fazer efeito com a soldadesca. Para elas o acaso é sempre "mero" e sem significado algum. Acreditam ter, ou poder tomar e retomar, as rédeas ou sei lá que comandos de seus destinos, nas mãos, pois mesmo que fossem cavalgaduras os destinos, creio eu, dificilmente aceitariam arreios, bridas e freios a lhes comandar. Mas dizem essas pessoas: eu sei o que quero, escolho meu caminho, pelo menos sei o que não quero e, assim, decido meu norte e rumo...
Não sou desses. A própria escolha, em si, me parece sempre um absurdo. Claro, posso escolher o ônibus, se tenho certeza de onde quero chegar, mas até essa escolha banal me deixa um sabor de frustração. Pode haver razões objetivas para entrar nesse ônibus e não naquele mas, com isso, abre-se mão da aventura - aventura não é só ir para a África caçar rinocerontes - o que poderia acontecer se entrasse naquele ônibus em vez desse? Lembro a história famosa, que li ou vi não sei onde, do cara que faz sinal para o ônibus. O motorista pára e avisa: só há um lugar, com um jeito tão estranho que o cara não embarca. O ônibus segue e, antes da próxima curva, explode. Os desastres aéreos estão cheios de histórias assim...
Desconfio do acaso. Muitas pessoas dizem ser superstição o simples fato de achar um acaso significativo. Pelas definições do dicionário, superstição implica ou em religiosidade ou numa crença sem provas ou fundamentos na razão. Ora, é bem fácil perceber que toda a estrutura racional, apesar de mais evidente e palpável, está longe de resumir o ser humano em toda sua multiplicidade. Hoje, fala-se no botequim da esquina em biodiversidade, palavra que ainda nem foi parar no dicionário. Há vinte anos, ninguém sabia o que era isso. Algum dia vão começar a falar de homodiversidade ou sapiensdiverdidade, sei lá. Só sei que somos um animal bastante complicado, com muita coisa funcionando ao mesmo tempo, a maioria das quais mal conseguimos perceber...
Einstein achou um absurdo imaginar o Todo Poderoso jogando com os destinos e a Vida ao sabor do acaso, como quem joga dados. Se o vôo do inseto é bruscamente interrompido pela teia e ele vira refeição de aranha, isso nos parece normal e dizemos que foi o acaso que decidiu sacrificar um e alimentar outro. Ninguém jamais cogitou que poderia não ter sido essa mosca, aquele indivíduo, precisamente, mas um outro qualquer. Ou, então, que ela poderia ter passado ao largo dessa teia para enfrentar a pegajosa língua de um sapo depois...
Desconfio do acaso e, por isso, ele me fascina. Mas vejo o quanto é inútil abordar o assunto com palavras e razões. A lógica é uma ferramenta maravilhosa para lidar com os processos intelectuais, com as estruturas e operações do pensamento. Só. Buñuel se pergunta, no livro, porque o ricaço não jogou o charuto duas esquinas antes ou depois, mas justamente ali, diante do mendigo... e supõe sem fim o encadeado de perguntas que o Acaso sempre pode gerar...
Não, não podemos nos aproximar do Acaso
com perguntas e respostas. Se desse certo seria muita coincidência...
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