Qual rio em eterno fluir, de fino fio d'água até se tornar quase mar, antes de no oceano desembocar, corre a vida a se mudar o tempo todo e essa mudança perene é viver.
O entorno muda e esta alteração nos impõe mudar também. Quer se tome consciência, quer não, muda o mundo ao redor e com ele mudamos nós, no admirável fluxo da vida.
O envelhecer propicia ponto de vista privilegiado a realçar tais modificações e logo sobem à boca expressões batidas e ditas saudosistas. Mas, por bem ou por mal, nos adaptamos aos novos tempos, dos "Tempos Modernos" de Chaplin ao convívio com robôs e a densa nuvem de satélites a zumbir sobre nossas cabeças.
Disse um missivista sobre a crônica de ontem "Estou com o Capeta e não abro!" enquanto outro observava "O capeta, nas suas várias formas, sempre precisou existir." Pura sabedoria, de ambos e, como o passarinho da Ilhas Galápagos de Darwin aprendeu a usar um espinho para "pescar" rechonchudas larvas no fundo de buracos, aprendemos e aprenderemos a usar e conviver com um novo mundo sempre a se refazer ao redor.
Talvez a maior mudança neste planeta, nos mais de setenta anos por mim testemunhados, seja mesmo o quanto somos, sempre fidelíssimos à divina recomendação inicial: "crescei e multiplicai-vos". Nosso número triplicou neste curto tempo, dos cerca de dois bilhões de quando nasci para os mais de sete bilhões atuais e continuamos a crescer conforme a finalidade expressa de nossa "fabricação", segundo a psicóloga ou antropóloga anônima.
Rapidamente criamos dependência do Capeta e de seus pares, como o automóvel, o GPS, o celular etc. e, em pouco tempo, tornam-se tão familiares como comer, beber, andar ou falar.
Por sorte preservamos em nós este requisito tão imprescindível à sobrevivência a longo prazo, não do indivíduo, mas da humanidade: a adaptabilidade.
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Thu, 10 Mar 2016 11:32:33 -0300
Oi, amigo Acho que, pela primeira vez em tantos anos, discordo de você - ou antes, da implicações que sua correspondente tirou de sua crônica:
"Felicidade? Talvez cada um de nós conheça flashes de felicidade, lampejos breves e esporádicos de um estado permanente apenas para o casal primeiro, antes de provar da ciência do bem e do mal."
Eu penso, acredito mesmo, por minha experiência, que felicidade não é uma coisa momentânea. As pessoas não têm "laivos" de felicidade, a não ser que confundam felicidade com momentos alegres, sem preocupações - o que, evidentemente, ninguém tem o tempo todo. Acho que felicidade é uma espécie de dom, que algumas pessoas têm e outras não - como a fé. Eu não sou capaz de ter fé, não consigo acreditar em nada de sobrenatural ou coisa parecida. Da mesma forma, acho que há muitas pessoas que têm o dom da felicidade, e outras que não têm. Para algumas, ter fé é parte de um estado mais ou menos permanente de felicidade; para outras, nem há nada - nem a fé - que faça essa mágica. Meu pai (que acho que não tinha o dom) dizia que a felicidade é dos pobres de espírito - como nas palavras de Jesus. Mas eu vejo pessoas muito inteligentes e informadas que são felizes, mesmo que vivam em condições difíceis e passem por crises de ofrimento. enquanto outras aparentemente privilegiadas por uma vida de fartura, alegrias e bem estar não são. Vou te dar alguns exemplos. Uma das pessoas mais felizes que já conheci (e que aparentemente tinha muito pouco motivo para ser feliz|) foi minha empregada por vários anos, foi uma das que me ajudaram a criar meus filhos. Tinha nascido na Amazônia, com ascendência indígena (ou talvez fosse mesmo uma índia), e foi exportada ainda garota, junto com a irmã, para São Paulo, trazidas por uma família paulista para serem empregadas (ou escravas?) domésticas. A irmã nunca se casou, mas ela acabou se amigando com um português que nunca se casou com ela porque a família não aprovava a relação. Tiveram quatro filhos. Quando ele morreu, ela ficou (por caridade) em uma casinha modesta na Vila Madalena (que naquele tempo ainda era uma área meio rural, com chácaras, habitada por um pessoal bem simples, de classe baixa). A família do companheiro sempre a ignorou, e filho mais velho, quando cresceu - ou depois da morte do pai? - ficou do lado da família e contra ela. A segunda, uma menina, virou uma adulta depressiva; casou-se, teve uma filha, separou, tentou suicídio (acho que mais de uma vez). O terceiro virou maconheiro e vivia às voltas com a polícia (preso, espancado etc.). Ela acabou conseguindo mandá-lo para Manaus pra escapar da polícia e, pelo que sei, não teve mais notícias dele. O quarto era epilético, e era a mãe, já meio idosa, quem ia todos os meses ao hospital das clínicas para buscar o remédio dele. Quando fui trabalhar na Bahia com dois filhos pequenos, levei comigo ela e a irmã pra me ajudarem. Elas cuidavam da casa e dos meninos enquanto eu trabalhava. Era um apartamento pequeno, elas dormiam em um quartinho mal ventilado e muito quente; acabaram me pedindo pra comprar redes pra elas dormirem (lembranças de seu passado na tribo?). Aos domingos, saíam pra passear. Eu ficava meio preocupada, com medo que elas se perdessem (eram analfabetas), mas elas sempre voltavam, animadíssimas, cheias de novidades e de amigos.
Quando voltamos e nos mudamos para a Granja, ela foi comigo. Tinha um pouco de medo de dormir sozinha na casinha de baixo, mas tocou em frente. Estava perto de fazer 70 anos, e muito animada porque haveria uma festa. Ela me consultava sobre a cor do vestido que ia mandar fazer: seria mais adequado pra idade dela azul ou roxo? Alguns dias antes da festa, nós a encontramos morta na cozinha; estava fazendo um suflê de chuchu, uma de suas especialidade, e teve um enfarto fulminante. Não chegou a sofrer. Por toda a minha convivência de muitos anos com ela, acho que posso dizer que era uma pessoa feliz - e pelo menos mais uma pessoa que a conheceu de perto concorda comigo. Outro exemplo é de um grande amigo: um homem bonito, charmoso, teve várias relações afetivas fortes, casou-se e teve duas filhas, acabou se separando e entrando em outras relações. Hoje está velho e tem uma companheira de muitos anos. Nunca teve muito dinheiro. Ao contrário, batalhou muito como músico, mas sempre foi meio orgulhoso e não se deixou comprar por caminhos fáceis que não aprovava. Uma das épocas em que o encontrei mais feliz foi quando, por não terem dinheiro pra pagar um aluguel, foram morar em um camping, com duas barracas, uma maior que continha quarto/ escritório (com computador e tudo), cozinha, varanda, e uma barraca para hóspedes (me hospedei lá em uma de minhas viagens para a Bahia, onde moravam). Ele fez amizade com muitos dos moradores do acampamento, vários dos quais eram estrangeiros com quem ele se divertia muito conversando em inglês ou espanhol. Diferente de minha empregada, é uma pessoa muito informada, inteligente (mas acho ela também devia ser inteligente, à moda dela...), com valores alternativos muito arraigados que acho que fazem parte dele e de seu bem estar. Não preciso dizer que me incluo nessa categoria, ainda que tenha passado (e ainda passe) por muita coisa difícil na vida, como penso que você sabe.
Em contraste, conheço várias pessoas que não tiveram grandes dificuldades na vida, embora, como todo mundo, tenham passado por fases melhores e piores. Dois deles são amigos homens: por melhor que estivessem, estavam sempre estressados e insatisfeitos. Para um deles, quando se casou pela quartra vez (e finalmente ainda é casado até hoje), perguntei se agora estava feliz. E ele me respondeu: E alguém é feliz?
Felizmente, não sou a única a pensar assim, senão poderia achar que é loucura minha. Conversei mais ou menos recentemente com uma prima muito querida (de passagem, muito inteligente, muito informada e bem sucedida na vida), que hoje mora no Rio. Convivemos em parte de nossos anos de juventude, nos reencontramos mais recentemente. E ela também acha isso: felicidade é como um dom como a fé, talvez não seja possível para quem não tem o dom. Vai ver que até tem um componente genético...
Bjs Ana
Gostei muito de toda sua carta. Não apenas pelas belas histórias ali relatadas, como por me apontar uma verdade que meu entusiasmo ante a opinião da psicóloga (ou antropóloga) norte americana eclipsava. Via distorcida a pressão dos hormônios e de nosso "fundo" em prol da procriação. De repente, tudo me parecia a urgência de garantir as próximas gerações. Existe este fato, é claro, mas somos obviamente mais do que este aspecto. Também não consigo acreditar em fenômenos sobrenaturais, apesar de perceber em mim um impulso irracional para valorizar os acasos, as coincidências etc. - o que imagino estar nas raízes da superstição. Afinal, o ser humano criou Deus e tal feito deve ter começado com pequenas superstições, creio. Quanto à felicidade, não a saberia sequer definir. Imagino ser o desejo último do ser humano (não do indivíduo) um estado de paz consigo mesmo, isto é, ele poder ficar consigo sem haver conflito(s) entre o que pensa e suas ações. Agora, é a melhor imagem de "felicidade" que consigo formular.
Thu, 10 Mar 2016 14:59:19 -0300
e digo eu, "CAPETA". Adotei. Sabe? o xingamento é poderoso, e está a me aliviar .... porém, o nosso diário instrumento de comunicação merece um termo ainda + agressivo!!! é pouco para ele. Não é só travesso não. Beijo. É bom te ler. CIAO
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Obrigado. É só uma máquina, pode xingar, desprezar e até bater...
Thu, 10 Mar 2016 19:58:34 -0300
Adaptabilidade...
Você pesca cada palavra melhor que outra.
E logo logo apresenta outra...
(boa noite aí... em tempos abomináveis dos políticos...)
Boa noite acolá!
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