Assunto Delicado

 

O senhor do consciente, embriagado dos vapores do dia, amolece. Do corpo prostrado, que aos poucos relaxa, se aproximam outros deuses e deusas, senhores de longínquas paragens desconhecidas do Zeus da razão.

Prescinde-se de esqueleto e músculos, pois as viagens, agora, percorrerão tempos e distâncias além da força muscular. Este corpo, que se cansa e morre, será cuidado com desvelo para reparar danos que a razão mal pode perceber.

Assim pois, "libertado das servidões da razão" e com o mesmo espanto que a personagem de Garcia Marquez, se mergulha em outro universo, que replica e amplia sentidos da vigília e traz todas as possibilidades de locomoção, em todos os fluidos. Pode-se voar por todas as atmosferas, nadar em qualquer líquido, amniótico ou não. Sonhamos!

Quase sempre o silêncio é a opção: teme-se falar ao amigo a palavra dura, verdade que nos salta aos olhos e, supomos, lhe será incomoda ou o poderá ferir. Pior: quase sempre é por existir já a ferida, que imaginamos a dor e evitamos o que é, o fato - a verdade. Mas deusas e deuses das regiões incógnitas fazem suas bacanais quando menos se espera e vêem o Zeus razão adormecer no corpo cansado. Falam e gritam o que é.

Os sonhos nos dizem, sem papas na língua, o que amigos calam por respeito à dor hipotética, que temem provocar. Os sonhos falam mais, coisas ininteligíveis aos limites da razão... Que faz Zeus dos fragmentos que sobram no despertar? Pouco, muito pouco. Talvez até os queira decifrar, interpretar, classificar... mas os métodos da razão não parecem adequados à matéria dos pesadelos, dos vôos e mergulhos com que os deuses e deusas dos sonhos nos desafiam.

São seis bilhões de sonhos a cada noite! Ou muito mais, pois cada um pode sonhar vários curtas-metrgens numa noite só. Mais de dois trilhões de sonhos por ano. Números mais incompreensíveis do que os dos economistas. É quase impossível não repetir as palavras Buñuel em seu livro-testamento "Meu Último Suspiro", compilado por seu roteirista Jean-Claude Carrière e publicado, aqui, pela Nova Fronteira, em 1982, em tradução de Rita Braga: "Milhares e milhares de imagens surgem assim cada noite para dissiparem-se quase que imediatamente, envolvendo a terra num manto de sonhos perdidos. Tudo, absolutamente tudo, foi imaginado por tal ou qual cérebro e esquecido."

Jung relata o costume de uma tribo africana, que se reúne pela manhã para que todos possam contar os sonhos. Nossa sociedade orgulhosa de sua globalização prefere contar moedas. Você dirá que, nem ao menos, sei o nome da tal tribo e as cifras nas bolsas de valores são concretas e astronômicas? Sim, é sempre assunto delicado falar daquilo que a razão mal pode roçar...

 

Publicada sexta-feira, 2 de julho de 1999

 

 

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