Bela, bela

22/11/97


Ah, o pomo de ouro da guerra de Tróia, os escravos de todos os espelhos e seus espaços profundos! Ah, apesar de tanta nudez, de Nelson Rodrigues e do pudor extraviado, apesar de tudo, a mulher bela continua sua órbita inexorável de cometa e o homem, os homens, cometem ainda desatinos e põem na balança, inconseqüentes, por ela, outras vidas e seus destinos! Por ela, a mulher bela!

O que me intriga não é o fato dos homens babarem sua baba espessa no peito peludo, o que talvez até pudesse explicar esse hábito absurdo que persiste ainda: a gravata; não é o fato das mulheres passarem uma boa parte de suas vidas em função de se embelezarem ou, pelo menos, dedicadas ao que supõe poder toná-las mais belas e acharem tudo isso coisa muito natural - já vi dados sobre a grana que movimenta a chamada indústria da beleza. Não os tenho comigo, mas nem precisa, basta conferir os preços cobrados nos salões de beleza mais chiques - mas não é nada disso que me intriga: fico perplexo diante da impossibilidade de mútua compreensão!

Parece um paradoxo, mas por mais que queira, tenha a maior boa vontade e a melhor das intenções uma mulher jamais sentirá o que um homem sente diante da mulher bela. A recíproca é verdadeira. O homem faz troça e considera "coisa de mulher", com o mesmo interesse que tem pelos folguedos de uma criança, toda preocupação e tempo que a mulher dedica ao se embelezar. Nunca poderá sentir o "problema" como ela, provavelmente, o sente. É irônico, mas real.

Exemplos? Vou me abster de citá-los por serem óbvios demais. Bastas estar atento a toda estrutura que criamos em torno disso na sociedade que fizemos. Basta prestar atenção a tudo que se passa ao nosso lado e, é claro, também dentro de nós. Uma brincadeira de mamãe Natureza, provavelmente crucial para podermos chegar até aqui, que continua a funcionar com eficácia e a deixar suas marcas.

Vocês poderiam questionar: se é assim, a mulher feia não deveria jamais procriar. Confesso que me fiz esta pergunta por muito tempo. Para nossos olhos deformados por mil preconceitos e viciados, como nossa mente pelo que compramos como sendo o certo ou bom, para eles há pessoas, homens e mulheres, muito feias. Quando esbarrava com uma dessas pessoas é que, inevitavelmente, me vinha à cabeça a questão: como é possível transar com uma pessoa assim?

O leitor atento não deixaria escapar duas sutis observações: primeiro, que tem-se, aqui, uma visão masculina, na impossibilidade de qualquer visão divina e assexuada. Segundo, que até então não se tinha especificado uma relação sexual e poderia parecer cuidar-se, apenas, dos envolvimentos e encantamentos amorosos. Ora, as duas observações são, no fundo, uma: a questão sexual é, para o bem ou para o mal, inseparável para um homem e tem sempre, para ele, um peso importante no frigir dos ovos. Algumas mulheres me declararam conseguir alienar total e completamente o aspecto sexual: apaixona-se por um cara e continuam apaixonadas mesmo que a cama tenha sido um desastre. Duvido um pouco, mas não sou mulher e tenho que acreditar. Já ouvi o contrário também: o entendimento sexual era fabuloso... mas isso não basta! Pois diria que para um homem este pequeno detalhe assume uma importância decisiva, pelo menos por algum tempo, capaz de turvar sua visão para todo o resto... É triste, mas é bom que se falem essas coisas e, sem falar delas, não poderíamos continuar a falar do que falávamos, das pessoas feias, muito feias...

A primeira coisa que me passou pela cabeça, quando me fiz aquela pergunta cruel - como alguém com essa cara pode estar com um bebê no colo? - foi a maldita indústria do etanol. Esta droga institucionalizada e aceita como não droga, que faz um estrago muito maior do que outras drogas, proibidas. Além de toda miséria em que esbarramos a cada esquina, provocada pela álcool, vendido com os eufemismos de praxe, há a zombaria insuportável com que os marqueteiros humilham os desgraçados dependentes. Um bêbado não sabe o que faz, pensei. Mas era muito simplória essa explicação.

Sem dúvida, o impulso sexual masculino, mencionado de raspão acima, tem aqui mais importância que uma eventual bebedeira. Essa é outra diferença que um sexo jamais poderá saber, exatamente, o que, e como, o outro sente. Já vi mulheres com uma necessidade desesperada de encontrar um companheiro. Lembro, também, daquele ditado popular: há três coisas ninguém segura: água morro abaixo, fogo morro acima e mulher quando resolve dar. Mas, é óbvio, só posso saber do que se passa dentro de um homem...

Comecei a falar tudo isso por causa da carta, mencionada ontem e, mais uma vez, não consigo chegar a ela. Talvez, seja melhor esquecê-la. Confesso que não tenho muito estômago para falar dessas coisas. Imagino que as leitoras já estejam com ganas de me dar uns tapas. Peço desculpas a todas vós, a quem, todos os dias, o escravo do espelho confirma: não, não existe no mundo mulher mais bela que vós!

 


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