O genial Nelson Rodrigues é também Falcão. Pouca gente lembra e quase ninguém diz Nelson Falcão Rodrigues. Em suas "Confissões", não lembro da presença de sua mãe, a Falcão, por certo. Fala do pai, o grande jornalista lido em voz alta nos botequins, conta o assassinato do irmão e jamais chama o estádio de Maracanã, sempre pelo nome do irmão morto - Mário Filho -, alheio ao comportamento de boiada das torcidas, fala da irmã, às vezes, do cunhado e dos vizinhos, muito. Jamais da mãe. Eu também não uso, na prática o nome de minha mãe, que ainda carrego nos documentos oficiais. Tenho um amigo que esconde, deliberadamente, o sobrenome da mãe, por achá-lo feio ou vulgar, sei lá.
Mas não importa. Voltando ao príncipe dos cronistas, o que quero dizer é que fico cá matutando por que essa sua obsessão em ser obsessivo... E o era, é óbvio! E o óbvio, em se tratando do Nelson, ulula... Não, dona Sabrina, o Lula, o metalúrgico, não tem nada a ver com nossa história... tampouco sei se vai ser candidato, é mais fácil saber que, se o for, será derrotado, salvo se fizer uma aliança - a palavra certa aqui seria conchavo, dona Sabrina - um conchavo com o pefelê, atual representante dos governantes, desde Cabral... mas, se posso voltar ao cronista, que se dizia e digo um obcecado, por que, me pergunto, pisamos e repisamos do berço ao túmulo algumas idéias, determinados modos de ver ou nos sentimos irresistivelmente atraídos por algum rótulo ou tipo de comportamento, como a adúltera ou o suicida, só para citar algum? Por que se nota, em Nelson, uma ponta de orgulho, como aquele de quem ganha uma medalha, ao receber o apelido de "Flor da Obsessão"? Por quê?
Pra dizer a verdade, não é bem isso, óbvio. Nem tão ululante assim: no fundo quando se quer compreender o outro o que se busca, de fato, é a compreensão de si. Quer-se saber porque fulano ou sicrana é assim ou assado, quando se sente esse modo de ser, assado e assim, em si próprio e não se consegue direito entender - nem a si, nem ao tal modo de ser. Tia Sophia já dizia que todo pai - ou mãe - acha mais difícil lidar com o filho - ou filha - que lhe saiu mais parecido. Claro, dona Sabrina, claro que a titia não se referia, aqui, às aparências, ao aspecto externo...
Volta e meia digo: é meu jeito, eu sou assim. Muita gente gosta desse "sintoma de coerência". Alardeia como qualidade até seus defeitos mais arraigados num elogio burro e cego à obstinação. Poder-se-ia imaginar (é tão bonitinho o pronome copulando com o verbo, em mesóclise! Pena que não se usa mais...) poderia se imaginar, à beira do túmulo, um trecho de elegia assim: ... em sua fibra odiou os medicamentos por toda a vida. Bebê ainda, regurgitou no regaço da mãe as primeiras gotas homeopáticas que ela tentou administrar e, agora, seu longo e último suspiro, veio misturado à tentativa vã de cuspir na cara da enfermeira uma poção que poderia - quem sabe? - salvá-lo ... Morreria como herói, porque não traiu a coerência idiota! Flores e lágrimas para aquele que se estrepou mas não mudou. Morreu fiel a seu modo torto de ser!
Ah, o mais difícil de tudo é abrir as janelas ao novo! Mais difícil, só mesmo abandonar a casa e sair, como dizia o baiano, sem lenços, sem documentos, sem qualquer passado para arrastar como uma concha de caracol. Mas até a fresta tememos! Tento a tevê. De tempos em tempos repito a tentativa. Ligo o aparelho e procuro algo que me prenda, em qualquer canal. Duas, três voltas e volto à mesma conclusão: nada há que me interesse. Desligo. Da última vez, passei por um anúncio (acho que de uma revista) que acabava assim: você é o que você lê. Os outros industriais e comerciantes do entretenimento poderiam completar, com o mesmo grau de verdade: você é o que você vê, o que você assiste, o que você ouve, no rádio, na tevê, no cinema, no teatro, no show...
Triste verdade! Você quer ser o que você lê, ouve, vê, etc.? É isso que você quer ser? Não tripudiar demais , além de toda tecnologia de persuasão que tem moldado essa nossa sociedade, ainda dizer na cara de pau: compre (nem sequer é jogado de aeroplanos, como a propaganda de guerra, de graça!) tripudiar dizendo: compre nosso manual de como você deve pensar, agir, se comportar, falar, e supor que está compreendendo o mundo ao redor de você! Se traduzirmos o que dizem os jornais, revistas, rádios, tevês e, inclusive esta Internet e este cronista aqui, traduzirmos para sua essência, se pudéssemos reduzir a sua expressão mais simples, como dizem os matemáticos, ouviríamos algo como: você deve pensar assim; você precisa de tal coisa; você será feliz se tiver isso ou fizer aquilo; fulano de tal é o bode expiatório do momento; devemos apoiar sicrano, nosso salvador de plantão; sinta-se assim e assado, pois é esse sentimento que interessa aos meus lucros ao crescimento e poder de nossa majestosa empresa... E por aí vai...
Por isso me pergunto sobre essa mania de ficar se gabando das próprias obsessões. Talvez a atitude mais esperta fosse: estou obcecado; logo, o tema torna-se suspeito. Aquilo que carrego "do berço ao túmulo" deve ser um desafio que a vida coloca e torna a colocar à minha compreensão. Se digo: sou assim, sou obsessivo e dane-se! - cessa toda possibilidade de compreender...
Publicada sábado, 8 de novembro de 1997
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