Cascavel

19/01/98


A cobra era jovem, não muito grande e, mais ou menos, da grossura de um desses isqueiros descartáveis. Como sei que era jovem, dona Sabrina? Não, não perguntei à cobra quantos anos ela tinha, acontece que já encontrei outras cascavéis por essa vida, algumas bem maiores. Certa feita levei uma, viva, para o Butantan. Além disso, essa parecia estar com a pele novinha em folha, como se a tivesse trocado há pouco. Estava linda e brilhante, com as cores bem vivas. Ah, bem sei que a maioria das mulheres detesta cobras! Só essa relação - a mulher e a serpente - já daria um samba enredo inteiro e, em outros tempos, só não deu pano pra manga porque os dois andavam sem mangas, camisas, calças, cuecas nem calcinhas. Mas deu folha, de certa forma, precursora do pano, que alguns querem de parreira só para humilhar Adão... Acho mais provável que tenha sido de taioba ou de bananeira... Bem, ia apenas mencionar que as mulheres, que têm tantos cuidados com a pele e, desde a antigüidade, usam um arsenal de cremes e loções na busca de manter perene o viço que uma pele jovem tem, as mulheres talvez detestem ainda mais a serpente por esse detalhe: a pele está velha, meio ressecada, suja, gasta, com marcas e outros sinais? Tudo bem, troca-se a pele por outra, úmida, nova, impecável...

Como sei que era uma cascavel, dona Sabrina? Ora, pelo chocalho na ponta do rabo - se não me engano ele também dá uma dica sobre a idade da cobra pois, a cada troca de pele, o chocalho fica com mais um anel. Não é isso? Ah, sim, se as mulheres trocassem de pele, como as cobras, não creio que teriam a idade delatada, como acontece com as cascavéis. Afinal, com as outras cobras é diferente, mas por favor, preciso contar o nosso encontro e não especular sobre a influência dos ofídios na simbologia da maçã! Não, dona Sabrina, não o nosso... deixa, deixa pra lá...

Ia pelas trilhas costumeiras com o cão. Ele, por ser jovem e cachorro, vai sempre uns dez metros adiante. Examina coisas de seu exclusivo interesse, de um lado e de outro e, se fica pra trás, entretido por algum odor que nem posso suspeitar, em dois pulos me alcança e retoma sua dianteira de costume. Chegamos a uma espécie de clareira natural, onde o mato ralo some, provavelmente devido à sombra das árvores que se fecham em densa copa. É a orla da mata. Dali o terreno desce, cada vez mais íngreme e com árvores mais altas até o córrego no fundo do vale. O cão, transbordando juventude e alegria pulava como um cabrito, pois só mais adiante as árvores ficam muito próximas e o chão acidentado. Ali, como disse, era quase uma clareira. Fui adiante, mata adentro, atrás do cão, quando duas borboletas, dessas que fazem um ruído que parece estalo de eletricidade, chamaram minha atenção. Parei para olhar os lepidópteros que pareciam namorar em seu vôo e estalavam cada vez que se tocavam! Ia seguir, dar um passo, quando olhei para o chão e ela estava ali, a menos de um metro de meus pés. Como disse, era linda e parecia ter acabado de trocar a pele...

Perdi alguns segundos antes de me lembrar do cão. Também, estávamos os dois, eu e a cobra, olho no olho, imóveis. Mal me perguntei de que espécie seria e ela prontamente respondeu com a sacudidela do chocalho. Não estou certo, mas creio que nele só havia dois anéis. De tempos em tempos ela vibrava o chocalho, que tinha um som bem fraquinho, por sinal. Ao compreender o perigo, chamei o cão. Ele veio aos pulos como, aliás, ficara o tempo todo, pura alegria! Veio direto na minha direção. No caminho, pisou na cobra e pulou no meu peito. Dei uns passos para trás para afastá-lo do perigo, achei ótimo que ele não tivesse percebido aquele bicho estranho e o agarrei pela coleira.

A cena foi muito rápida. Depois de ver a pata de trás do cachorro resvalar na bicha, ficou apenas a imagem da cobra imóvel, numa nova posição, com a cabeça virada para o centro do próprio corpo, provavelmente, devido à reação para atingir quem a pisou... Na fração de segundo em que tudo aconteceu, se os olhos viram, o cérebro não conseguiu entender...

Coloquei a guia e prendi o cachorro num galho de árvore. Só então percebi que eu e o cão estávamos intactos por mero acaso, ou sorte - dá no mesmo. A vida está sempre por um fio e, apesar da certeza da morte, a levamos como se fossemos eternos...

Com o cachorro a salvo e bem preso, adivinhem qual foi o meu impulso. Peguei o galho, forte, de madeira boa, que quebrara para prender o cão e voltei, decidido a matar a cobra. É óbvio que ela não estava mais lá. Já devia estar bem longe. Nenhum rasto, nenhum sinal. Nada. Restava a tristeza de ter tido este ímpeto. Por que matar? A vida também nos prepara uns flagrantes de nós mesmos...

Talvez a cobra fosse uma guardiã da mata, que estava ali na orla para evitar que intrusos, como eu, invadissem um lugar sagrado...



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