A Terça Gorda se desmancha em cinzas. Em verdade, hoje, mais parece se desfazer em banhas o vale de carnes, que prepara luto milenar, a cumprir rito antigo de opulência e poder. Carmim e púrpura pigmentos difíceis, de extratos de cochonilha, inseto que abomina latitudes européias, se reservavam a reis e cardeais. Os funerais papais escancararam tais instrumentos do poder da crença. O crente, ao eleger religião ou marca comercial, transfere aos donos da marca ou religião tanto mais poder quanto maior a fé. A multiplicação de fieis, seja ao produto, seja às promessas de recompensa futura, dá aos donos da patente comercial ou religiosa poder proporcional.
Basta ver a fúria com que se busca e o quanto se gasta para convencer a dona de casa a usar outro sabão; o garoto a mudar a marca de cerveja, o miserável a adorar outro deus. Essa fabulosa roda das fortunas rola a bola nos gramados, despeja Escolas em sambódromos e modelos - que já foram manequins - nas passarelas e verte mais, muito mais, por leitos e altares, em becos sórdidos e santas casas, luxuosos lupanares e beatas sacristias. Ao se desfazer em cinzas o carnaval, cobrem-se de púrpura a nudez dos altares - e não só os de São Sebastião, o santo nu varado de flechas - e assim ficam por 40 dias. Calam-se sinos e órgãos e com muitos outros sinais assinalam ritos, o que solidifica a crença. Dai-me m guia, mostrai-me o caminho, tenho preguiça demais; tomai minha mão, cantai-me uma canção que entorpeça, pousa meu corpo extenuado de lascívia e concupiscência no regaço macio da virgem celestial. Sois Deus, tudo podeis e a mim fizestes mortal e pecador - confesso, pois mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa. Que mais? O diabo sorri, pisca um olho e faz, com um sopro, turbilões de serpentinas e confetes pelo asfalto da avenida. |
|home| |índice das crônicas| |mail| |anterior|