Não vou transformar essa crônica, que já não o é, num exercício de contar contos, aos pouquinhos, como aquele que reza repetidas ave-marias e por isso as precisa contar nas contas do terço, para garantir seu rosário. Não que não sonhe com um folhetim, onde se publicasse uma história aos pouquinhos, como cocô de cabrito ou que desconfie do método ou algo assim, não! Um único exemplo me basta para provar sua eficácia, embora sejam dois os livros paridos no exemplo singular: "A Pedra do Reino" e "O Rei Degolado ao Sol da Onça Caetana", ambos do atual e polêmico Secretário de Cultura de Pernambuco, Ariano Suassuna, que os fez publicar, folheto por folheto, a cada semana, no Diário de Pernambuco, em meados dos anos setenta. Não, não vou transformar esse espaço de ensaios variados, onde se propunha uma simples crônica para começar, no laboratório de como contar um conto, seja ou não em folhetins, por alguma eventual aversão aos contos ou à arte de os contar, mas tão só por não ter uma única história que olhe e diga: essa vale à pena narrar.
Ontem contei uma cena solta, um encontro improvável e alucinado de uma mulher com um homem. São duas personagens, recorrentes, até nos nomes, de velhas tentativas de conseguir qualquer ficção. Havia posto de lado a pretensão na pilha de muitas outras, abandonadas por uma ou outra razão. Das recorrências existentes nessas antigas ousadias talvez mencionasse, além de encontros como aquele, súbitos e inexplicáveis, os confessionários e as confissões e outros encontros - sempre de um homem e uma mulher! - minuciosamente articulados pelo senhor Acaso, como queria Buñuel. Nada de mais, já se vê - nada de nada, aliás. A verdade nua e assustadora é que não tenho nenhuma história para contar...
Criar uma personagem, por exemplo, para depois precisar matá-la, picá-la em pedacinhos e, ainda por cima, enfiar tudo numa mala pelo bem da história? Algo em mim rejeita o parricídio - psicólogos disponíveis podem fazer suas apostas: gosto de ler essas histórias, adoro as tramas bem urdidas! Há pouco caiu-me nas mãos um livrinho maravilhoso que, infelizmente, parece, estar esgotado: "Gabriel Garcia Marques Conta como Contar um Conto". O título já diz tudo, ou quase. Um dos maiores contadores de histórias deste século descobre, junto com os alunos de uma escola de cinema, que ele ajudou a fundar, onde está a história, no sonho de filme que cada aluno tem e quer fazer... São muitas pequenas histórias, às vezes, nascidas de uma única cena, tudo que o aluno tinha, de fato, sobre o filme que precisa e quer fazer...
Criam as personagens. Delineiam hábitos, manias, gostos, tudo! Imaginam o jeito de viver e a história da vida daquela pessoa que nunca existiu. Como teria sido sua infância, as crises da adolescência, os vícios inconfessáveis, e por aí afora, muitas vezes apenas para ter certeza sobre um gesto ou atitude numa cena de alguns segundos! Depois, com a mesma liberdade, envelhecem ou rejuvenescem as personagens, segundo as necessidades da história. Cortam-lhe um braço, se preciso for, ou uma perna, com a maior facilidade e sem anestesia, tudo em nome da grande ditadora e única coisa que realmente importa: a história.
Muitas dessas personagens acabam abandonadas num limbo de personagens que jamais existirão... não deram certo ou, simplesmente, apareceu uma idéia melhor. Outras precisam ser sacrificadas para que a história agrade ao freguês. É preciso criar tensão, é preciso que algo seja muito difícil, quase impossível, é preciso haver ódio, traição, desejo de vingança, desonestidade, trapaça, o lado mais bárbaro do ser humano. São esses extremos que fazem uma história precisar ser contada... confira no jornal. Onde está o notícia de que na rua tal muitos moradores saíram para a calçada no final da tarde, pois o calor era grande e o céu, muito azul, ganhou tons espetaculares de rosa nas nuvens que se erguiam como colunas..
O livro é fascinante e só espero que a Casa Editorial Jorge, de Niterói, faça uma reimpressão ou nova edição. É para ler e guardar... para consulta! Diante dos jornais, impressos ou da televisão, me pergunto quais as reais diferenças entre selecionar histórias das desventuras de pessoas de verdade e criar outras, com personagens onde toda semelhança é sempre mera coincidência... Talvez seja muito árduo fazer o "trabalho sujo" - selecionar o criar toda gama de baixarias necessária para a história funcionar - fazer isso, eu dizia, sozinho. Nos noticiários, cada vez mais, a informação é anônima - uma grande equipe prepara o produto final. Na tevê, alguém empresta seu rosto e voz, mas uma equipe ainda maior diluiu toda e qualquer opinião pessoal. Na escola, Garcia Marques propõe que a criação das personagens e da história seja um trabalho coletivo, um brainstorm, onde todos dão palpite - e é isso o livro, a reprodução de algumas dessas criações coletivas - mas sublinha que escrever o roteiro é tarefa individual, pessoal...
Oxalá Cecília e Frederico tenham voltado a se esbarrar, em algum encontro inesperado, tramado pelo Acaso...
Se tiver notícias, eu conto.
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