A natureza está quieta, recolhida. De tempos em tempos uma brisa move de leve alguma folha e nos certificamos que não estamos numa fotografia. O ar está úmido, chega a pingar e o céu, branco, parado também. Ora refletido como brilho intenso numa gota, prestes a se desprender de uma folha, ora espelhado em sua superfície, para lhe roubar a cor. Há, vez por outra um pio tímido ou um latido distante. Faz frio.
Eu era ainda muito pequeno e já ouvia falar da terrível seca "que afligia nossos irmãos nordestinos". Minha avó, carola de carteirinha, ou melhor, de várias carteirinhas e, seria mais exato ainda, se dissesse: várias fitas. Explico: todo santo dia, quando ia à igreja - e ela ia, todo dia, santo ou não - colocava uma fita, ou várias, no pescoço. Eram fitas coloridas, com uma pequena medalha na ponta. Cada uma com sua cor, identificava um grupo ou organização - "Filhas de Maria", "Ordem do Sagrado Coração de Jesus" ou "Congregação disso e daquilo", etc. Algumas vezes, me carregava com ela para a missa. Minha avó, não só ia, mas também comungava diariamente - coisa fascinante, com todas as atrações e encantamentos das coisas proibidas, pois, para uma criança como eu, era proibido comungar! Lá pela tantas, entre rezas que eu nada entendia - a missa ainda era em latim, - volta e meia o padre pedia para rezar pelos "flagelados da seca do nordeste" - o que, para mim, significava mais ou menos a mesma coisa que "as almas do purgatório" ou "os pecadores de Sodoma e Gomorra". De volta em casa, minha avó, provavelmente contaminada pela doutrinação cotidiana, de vez em quando repetia aquele "flagelados", que ecoava na minha cabeça misturado com as imagens dos suplícios de Jesus a caminho da cruz, obrigatórias nas paredes das igrejas. Depois, já adolescente, me espantei quando constatei já terem se passado muitos anos e a seca continuar a assolar o sertão nordestino, do mesmo jeito, como algum tipo de gavião caracará, e a produzir regularmente seus flagelados. Ninguém tinha feito nada para acabar com o suplício. Foi preciso mais tempo para entender que não era um problema de décadas, mas de séculos e que os governantes não estavam, absolutamente, preocupados com aquilo. Entender, de quebra, que a única preocupação real de qualquer governante é descobrir um modo de se perpetuar no poder - no fundo, são todos monarquistas, desde que monarcas também! Mas queria apenas dizer que não conheço a seca, salvo pelos noticiários e por essa vivência infantil. Tampouco conheço o deserto, embora dele sinta uma misteriosa nostalgia. Mas, isso, que pode ser apenas fantasia cultural...
Feitas essas ressalvas, chego ao que ia falar: se tivesse que ser religioso, adotaria e adoraria o deus Inca, o grande Sol! Queria dizer... não, não queria dizer, queria apenas compartilhar com você, leitora à minha direita e você, leitor da esquerda, compartilhar como platéia do mesmo show ou como quem está no teatro e gosta do que vê (no cinema, a escuridão cria um isolamento e o espectador a seu lado é outro barato...), compartilhar, como quem gosta do que vê e se entreolha e confirma com o olhar, ou gesto, essa opinião. Queria, apenas confirmar assim os efeitos do sol, de seu calor e do céu azul sobre a alma, mas não foi preciso. Ontem, a leitora à minha frente, virou-se para trás e o disse antes que eu pudesse falar. Suas palavras resumem tudo que queria dizer. Ou quase tudo.
É verdade dona Sabrina, os famosos congestionamentos
e as dez horas ou mais, que às vezes, o paulistano enfrenta
pra tomar banho de mar, o gosto de se tostar ao sol ardente de
nossas belas estradas, tudo isso, é prova cabal desse estado
de excitação que a luz, o calor e o azul podem produzir,
é verdade... Mas me impressiona mais a bicharada... Onde
estão? Em que ninho, em que toca se escondem? E as pessoas?
Se pudessem, não estariam, num dia como hoje, cinzento
e frio, debaixo de cobertas, de preferência, na companhia
de alguém especialmente escolhido, pois o calor humano
não se substitui nem pelo melhor edredom de plumas do patinho
feio, "que em noite de lua, vai navegando no lago azul",
assim como nenhum cobertor elétrico pode aquecer, além
do corpo, a alma?... Ora, ora, dona Eufrásia, que visão
estreita! O aconchego que menciono não tem nada de sexual,
pelo menos para começar...
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