Fomos para a varanda. Um varandim de nada, mas melhor que nada. Tia Sophia contou de varandões e trepadeiras em flor, falou de uma glicínia teimosa, que custou não sei quanto pra vingar... A tarde caía branca, úmida, como se o dia não fosse acabar. Só o céu era claro e dele, uniforme e difusa, emanava a pouca luz. Um pio grave e triste, de uma nota só, se repetia regular. Contei mentalmente o tempo, entre um e outro piar, com os truques de quem contou longas exposições, fotógrafo em outras encarnações... quatro segundos, mais ou menos... Entre tantos piados e cricris, destacava-se essa nota única, que lembrava um fagote. Outro repetia uma elaborada frase musical, com muitas notas e trinados e longe, bem longe, se podia ouvir a resposta de outro canto igual. A passarada estava particularmente loquaz naquela tarde. Pareciam conversar... ou namorar. Saí de debaixo do telheiro. No céu branco nenhuma nuvem se mostrava no que era uma nuvem só. No alto, dois gaviões planavam, à espreita...
Voltei pro aconchego do puxado e provoquei a tia: Não sabia que gostava de Danusa Leão... Ela, rápida também com as palavras, não perdeu a oportunidade: se dissesse que não gosto dela e ponto, já seria um preconceito. Em geral, as pessoas vivem assim, por preguiça, na base do preconceito. É mais cômodo. Pronto! Bastava um empurrãoziho e Tia Sophia ia embora; continuou: a gente pode mudar, muitas vezes quer mudar e esbarra no nosso rótulo de ontem, guardado com tanto zelo pelos que se dizem nossos amigos! Ah, como me incomoda ouvir uma mãe dizer ao filho: "você é assim ou assado"!... Poderia dizer: menino, hoje, você está muito isso ou aquilo. Assim, fica implícita a possibilidade de mudança ou a simples possibilidade de se acordar diferente no outro dia... - Tia Sophia respirou fundo numa pausa maior, mas seguiu: Queremos que nos diga o que devemos fazer, o que está certo ou errado, quem é bom sujeito quem não é e assim por diante. Dá muito trabalho descobrir, queremos os manuais, sejam eles o de boas maneiras ou um código militar. Xingamos os advogados, os juizes, toda estrutura da Justiça - messalina dissimulada de vestal - mas em nosso dia-a-dia somos juízes implacáveis, com os outros e como nós mesmos, criamos leis o tempo todo, dentro de cada um sobrevive o juiz e o ditador. Depois de outro suspiro: e pensar que nossa língua guarda essa diferenciação preciosa, já perdida em outros idiomas, pra nada... Ser e estar. O definitivo e o transitório. Um flagrante de um instante efêmero contra uma sentença de irreversibilidade... Ah, é muito difícil! Quando penso nisso, sempre me lembro das palavras daquela canção que ficou famosa no tempo da ditadura militar: "É proibido proibir." Sei que são versos, que usa e abusa de toda licença que se dá o poeta, mas o absurdo nela contido a transformou num símbolo, para mim...
Essa é a Tia Sophia! Basta um empurrãozinho... Fui pegar o tal recorte. Olha só, tia, quase dois anos, Jornal do Brasil, 1 de janeiro de 1996. E ela: leia, leia. Está até bem feitinha, bem estruturada. Tem a marca da autora, é claro. Isso é como o deeneá, não dá pra evitar nem esconder... Você, que se meteu agora a escrever crônicas, cuidado! Não pense que pode sair ileso, não. Jeito de escrever é pior que impressão digital, mas leia e me diga o que acha...
Comecei a ler alto. "Dançar não é apenas um ato inocente". Parei. O título já me remetia à adolescência. Não, dona Sabrina, jamais gostei e nunca soube dançar, nem quando adolescente. Mas foi então que descobri, não ao dançar, mas ao assistir um filme, a verdade repetida no título daquela crônica. Depois de mencionar hábitos de relacionamento (sempre de homem e mulher) em diferentes partes do planeta, a moça que deve ter feito Socila - uma escola que existia no Rio para preparar o que hoje é chamado de socialite - imagina situações onde um contato físico ocasional, os corpos ou mãos de um homem e uma mulher se tocam, por acaso e se repelem automaticamente, ela afirma. pois "se continuarem juntas (as mãos), vira logo uma enorme fofoca", pergunta o que aconteceria se... e descreve o contato físico, auditivo, olfativo e visual que existe na dança de salão, à antiga. Aí passa a descrever a dança. Sugere, para começar, Night and Day, com Sinatra... Imagina os mesmos casais que antes nem podiam deixar uma mão roçar na outra, agora "com os corpos colados, dos pés ao pescoço: tão colados que por ali não passa nem pensamento - a não ser aqueles, claro." A senhora Leão cita ainda algumas frases, que se sussurram na orelha os dançarinos, antes de concluir: "Vamos ser francos: dançar é a ante-sala da cama, e por isso mulheres e homens deveriam proibir que seus cônjuges dançassem com outro/outra. E, sem ter medo do ridículo, declarassem, em alto e bom som: 'Mulher minha não dança com ninguém - só comigo.'"
Antes que eu lesse o último parágrafo Tia Sophia observou: Não se esqueça que é uma mulher quem escreve... Olhei para sábia parente na cadeira de balanço antes de limpar a garganta e concluir: "E tem mais: qualquer mulher vai adorar ouvir isso - a não ser que esteja com outro na cabeça, claro. E se estiver, meu filho, nada a fazer: com ou sem dança, você vai acabar dançando..."
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