Em verdade, a morte de Demerval quase não atrapalhou o banquete. Aliás, dela poucos ficaram sabendo, já que a chegada e a partida de novos convivas era coisa assaz corriqueira. Euclides foi dos raros a acompanhar os ritos, que sempre eram levados a cabo com a indispensável discrição, de forma que os comensais, mesmo quando sabiam que alguém deixava para sempre o fabuloso acepipe, fingiam nada ter notado e evitavam, assim, qualquer constrangimento ao infindável degustar.
Em verdade, ali, quase tudo era fingimento. Os convidados não se relacionavam verdadeiramente, fingiam um interesse recíproco. De fato, havia interesses, e muitos e de variados motivos, mas não na pessoa, no ser humano e, sim, no que ele poderia representar em termos de oportunidades e poder. Nesse jogo, o sorrir era arma costumeira e poderosa. Embora uma arma tão desgastada, que já era impossível distinguir o riso verdadeiro, de genuína alegria, dos esgares da máscara facial.
Em verdade, quase todos a empunhavam com destreza, e com ela esgrimiam conforme protocolos e conveniências. Era a arma mor da "etiqueta" - termo com que eles próprios se regalavam e não passava de mais um conjunto de regras, outro manual da forma de agir. Todavia, o uso e abuso dessas máscaras, o ter que sustentar e ocultar outras manifestações poderosas do rosto humano, forçando músculos para o desenhar conforme a etiqueta, só funcionava cem por cento para os habituados desse jogo, os viciados no palco dos cortesãos, pois a corte permanecia, apesar da realeza se ter tornado mero adorno.
Em verdade, isso tudo transparecia em imagens publicadas a cada dia nas colunas dos jornais. Nas de todas as seções, de um modo geral e, em particular naquela dedicada às futricas sociais. Lá, até por simples constatação estatística, era possível ver além dos rostos, determinada hierarquia de poder e influência. Nas fotografias acabava transparente todo o horror daquelas máscaras, todo o medonho dos sorrisos falsos congelados. Podia-se ler, numa fotografia, a tensão e a mentira de um sorrir para esconder deboche, ou o medo enorme escondido atrás de dentes perfeitos e do árduo trabalho de cabeleireiros e maquiadores e sabe-se lá que outros profissionais.
Em verdade, em verdade, salvo em alguns raros momentos e apesar das aparências, quase todos detestavam e maldiziam a própria situação. No entanto, ao falar do estado das coisas, da situação coletiva, os convivas daquele interminável banquete costumavam usar uma estratégia de exclusão. O sujeito, o que criticava a situação, recorria a um coletivo abstrato, que o excluísse como responsável ou causador do status quo. A "culpa" estaria sempre num sujeito indefinido, quase sempre plural: eles, essa gente, o povo, etc. A multidão impessoal era réu e condenada, como se o simples fato de perceber e apontar a imperfeição, isentasse o interlocutor de qualquer envolvimento ou responsabilidade...
Euclides vagava pelos campos bem cuidados, entre as mesas renovadas com capricho e sempre mantidas como virgens, por uma legião de serviçais adestrados com perícia para a tudo acudirem e, ao mesmo tempo, não se tornarem conspícuos. De repente, no meio das máscaras, descobriu um semblante familiar, de uma feiura notável. Aproximou-se do desconhecido, que explicava a um pequeno grupo ser o bom senso "a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada qual pensa estar tão bem provido dele, que mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa não costumam desejar tê-lo mais do que o têm." Aquelas palavras confirmaram de pronto quem estava ali...
Euclides dirigiu-se a Descartes e retrucou: "Por outro lado, a coisa do mundo pior partilhada é o poder, pois cada qual jamais julga ser suficiente o que tem, e mesmo quem o tem quase absoluto, continua a desejar tê-lo mais do que já o têm."
(A frase sobre o bom senso está no Discurso do Método, de René Descartes, Abril Cultural, 1983, trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. Pág. 29.)
Publicada em 18 de março de 1999
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