auto-retrato [1987]

Despertar

28/11/08

Sem abrir os olhos apalpo ainda o sonho a se apagar. Deleito-me mais um pouco com um sorriso a se esvair. Tento, em vão, voltar à cena onde já não estou, perscruto o virtual em mim sem vias ao que, há pouco, era tão real. Ecos oníricos se repetem cada vez mais tênues, enquanto outra realidade se impõe mais verdadeira. Mais verdadeira?

Como Millôr diante do espelho, há muito me pergunto: e se a vida for do lado de lá? A outra em que nos dizemos adormecidos? O que existe para mim fora das projeções cerebrais? Do que meus olhos vêem bem abertos e acordados ou cerrados, em sonhos, tão reais quanto, ou mais? Ah, vã tarefa de filosofar!

Ido o sonho, abertos os olhos, achei-me vivo ainda e capaz de enxergar e logo o corpo repetiu em mim a síntese do envelhecer, de Rodolfo Konder: "no dia em que acordar sem algum incômodo ou dor, saberei que morri". (Atribuo-lhe a observação por aprendê-la de uma amiga comum.)

Que meandros ligam em nós a consciência ao repositório incomensurável e desconhecido de nós mesmos? Quem somos nesses subterrâneos? Por que ressurge tal personagem, há tanto apagada da memória? Por que somos outro e somos nós ao mesmo tempo?

Um pio inédito e impositivo apaga de vez os últimos farrapos do sonho. Sobre um galho horizontal do pé de chico-magro, uma ave maior que pomba, com um porte quase de pernalta e bicolor - preto e um branco sujo, meio cor de terra, café-com-leite claro, talvez houvesse detalhes brancos também - pia e salta ao mesmo tempo. É um pio forte e não melodioso, parece um grito. Pouco depois, voa em direção ao sol e, para minha surpresa, outra, idêntica sai de entre folhas da mesma árvore e seguiu a primeira.

A cada manhã, também se vão bilhões de sonhos, pedaços de cada um. Voam em bandos para o "manto de sonhos perdidos" que Buñuel sonhou.

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