"E dói pensar que o por vezes super-humano esforço de um dicionarista pode terminar com as mais indesejáveis conseqüências físicas, compensação intelectual bem pouco aliciante e resultados financeiros não demasiado expressivos." A frase está no prefácio à primeira edição do Novo Dicionário da Língua Portuguesa, em papel, e seu autor não viveu o suficiente para ver que as duas últimas previsões não se concretizaram. Aurélio, além de ser o nome mais conhecido deste dicionário, já virou quase substantivo comum, sinônimo de dicionário da língua portuguesa. Ninguém duvida que é uma obra hercúlea. Digo mais: ser dicionarista é um caso típico de vocação. O sujeito já nasce lexicógrafo. Ao primeiro berro, na maternidade, já é um dicionarista.
Encontrei, certa feita, o grande lexicógrafo, no elevador do prédio onde ele morava. Salvo as falhas da memória, no 48 da Praia de Botafogo, no comecinho do Morro da Viúva. O elevador subia com a lentidão dos elevadores antigos, de porta pantográfica dourada quando, de repente, ele, o próprio Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, na época, "apenas" autor do Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa (o pai do "Aurélio"), ele virou-se para nós, já que eu ia com um colega, morador do mesmo prédio, e o Aurélio perguntou, saído sabe-se lá de que devaneios: "chama-se de americano ao torcedor do América?" Não lembro o que respondemos. Ficou, apenas, aquela súbita e aparentemente inexplicável, preocupação. Aos vinte anos, parece totalmente irrelevante se os torcedores do América (clube de futebol carioca) são chamados de diabos (e o eram!) ou como quer que o fossem e devia nos parecer até absurdo, que alguém pudesse se ocupar disso!...
Aos vinte anos somos uns trogloditas. Acreditamos em nós mesmos mais que em qualquer deus. Somos oniscientes, onipotentes e, apesar do absurdo, nos acreditamos, inclusive, onipresentes. Se alguém tem qualquer dúvida sobre o que possa ser a vida eterna, observe um jovem nos seus vinte anos. Para todos os efeitos, é como se tivesse uma vida eterna. Com os cães, não parece muito diferente. Basta observar. Em relação a eles, cabe uma restrição importante: esse comportamento de semideus é típico do machos. Só depois que voltam de suas andanças com algumas feridas e mancando um pouco é que começam a mudar. Entre os humanos, haveria também uma diferença semelhante? Seriam os jovens machos mais arrogantes? Tenho minhas dúvidas... Aos vinte anos, eu achava apenas "simpático" o autor do Pequeno Dicionário...
Depois de velho é que concebi toda a angústia por trás daquela pergunta - diz-se americano? Quantas mil vezes ele deve ter procurado confirmar? Com sua faxineira, com o chofer do taxi, com o barbeiro, com o cobrador do bonde com todo mundo em que esbarrava, como nós, dois moleques, passageiros em um elevador e em sua vida. Que responsabilidade encerra a decisão, aparentemente banal, de incluir um verbete, ou não! Aos poucos, aquele autor com quem tinha esbarrado, uma única vez, há tantos anos e sua obra começaram a se pintar com outras cores, a ganhar outra nitidez. Afinal, tinha sido testemunha, por acaso, de uma gestação, de uma fração ínfima, que tende para zero mas, de qualquer forma um pedacinho de sua elaboração do Aurélio, o dicionário, é claro, e não, o autor...
Comecei a anotar no papel grosso da última capa interna do dicionário as palavras que via, ou ouvia, e lá não encontrava. Foi surgindo uma lista e a idéia vaga de, algum dia, enviá-la à guisa de colaboração. Poderia então, talvez, contar o episódio do elevador... O tempo passou, vieram as edições eletrônicas, baniram delas o prefácio do autor e eu transferi a tal lista para um arquivo de computador. Quando anunciaram a preparação da terceira edição, enviei a lista por fax, para a viúva, que diziam à frente de sua organização. Pode-se ver a lista, em seu estado atual. Todas as vezes que surge uma palavra não registada no Aurélio e que, me parece, deveria estar lá, ela é acrescentada à lista.
Por que tomo seu tempo com essas bobagens? Por uma única razão: entre todas as frustrações ou decepções com a grande teia mundial, a Internet - e não foram poucas! - essa é, para mim, a mais surpreendente. A lista está disponível há seis meses. Em seu rodapé há um pedido para que sejam enviadas palavras que outras pessoas em vão buscaram no Aurélio. Agora, adivinhe quantas palavras vieram? Zero. Exatamente zero. Eu já tomei a iniciativa de escrever para mais de uma pessoa, especialista nesse ou naquele campo, perguntando se usa-se, ou não, certa palavra ou apenas para confirmar uma grafia suposta (sou o campeão de errar eventuais grafias.) Mas nem uma única vez, uma só pessoa mandou uma mísera palavrinha que fosse!
Aí, fico tecendo hipóteses, como Tia Sophia tece com um único fio e suas agulhas... Quem sabe não têm o vício do dicionário? Pode ser... Ou, talvez, procurem sempre palavras que estão lá, a ninguém ocorre a surpresa do verbete que não está... Quem sabe? Pode ser, ainda, que o fato de uma palavra, que se usa, escuta ou vê, não estar entre os "bem mais de cem mil verbetes" da primeira edição ou "os cerca de 120 mil" apregoados na edição eletrônica lhes pareça tão irrelevante quanto a cor do saco de lixo... Pode ser, pode ser...
A minha mania vem porque dói pensar o quanto
é super-humano o esforço de um dicionarista... e
porque se apossou de mim essa sensação ainda mal
intuída, mal compreendida de que somos todos um único
ser...
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