Epitáfio

 

Eis o epitáfio: aqui jaz o cronista que não o era e morreu de computador. Calma, Dona Sabrina, não é necessário, já, cuidar do vestido negro, do véu e do lenço. Está bem, que o fato de estar morto, não dispensa a elegância e a causa mortis pouco preocupa à senhoras de cabeleiras como as do milho novo e mãos metidas em luvas longas, como as que ficaram famosas em Gilda, o filme. Está bem que é preciso combinar as luvas com o lenço de cambraia de linho bordada, pronto a aparar qualquer lágrima que ameace a maquiagem.

Não se tem notícia de que morrer de computador seja fato comum, mas se morre, eu garanto. Por experiência própria - completaria alguém mais afoito, sem lembrar que, da experiência cabal e definitiva, jamais se pode dar testemunho vivido na própria pele.

Lembro ter visto, há muitos e muitos anos, uma ilustração. Em verdade, nem lembro se li a matéria que ela ilustrava. É provável que não - a ilustração e sua legenda se bastavam. Numa Palyboy americana - acho que ainda não existia a versão brasileira - uma ilustração de página inteira mostrava o ser humano dos anos dois mil e tanto. Supunha o desenhista, as alterações que o lento, mas inexorável, processo de seleção natural traria a nossa figura. Olhos e orelhas descomunais. Lembro bem das orelhas, como as dos morcegos. (Era época da conquista do som - a toda hora aparecia um aparelho mais perfeito de alta-fidelidade.) O nariz reduzido a dois furinhos insignificantes. Braços e pernas magrinhos e curtos. Uma pança digna do melhor Sancho, um ventre rotundo como uma lua cheia. Tudo, envolto num desagradável tom esverdeado de pele. Era uma bela ilustração; uma triste imagem de nós.

Só muito depois veio a consciência coletiva da importância do corpo. A febre do Cooper e suas piadas: "fulano, só vai trabalhar depois do Cooper feito". Começaram a pipocar as academias e passou a ser chique desfilar de agasalho. Houve uma volta a uma vida mais saudável, e o cidadão - no sentido, hoje mais raro: habitante da cidade - saiu para as montanhas, entupiu as praias, buscou a intimidade perdida com os vastos jardins sem jardineiros, com horizontes eliminados por belas obras de arquitetura, com um céu ainda povoado de estrelas.

É provável que a vida encontre seus atalhos ou, se preferirem, que a humanidade corrija seus vieses, nos poupando as orelhas quirópteras e o abdômen de gravidez nos machos. Mas não tenho dúvida que o computador, ao lado do automóvel, se tornou um poderoso instrumento do diabo. O carro é muito útil, prático, símbolo de autonomia e negação do coletivo - substantivo que, no Brasil, é sinônimo de ônibus. É o ônibus particular, que vai para onde quero a hora que quiser. Como há muita gente - e poucos, ainda, por aqui têm seu carro! - os entupimentos são gigantescos: dos caminhos e da paciência dos indivíduos. Tenta-se corrigir fazendo as cidades em função do automóvel, de suas necessidades, de seu ritmo. A hipótese do cidadão ir à pé nem é mais considerada. O pedestre é um animal em extinção.

O computador, por seu turno, entrou em casa. Além de instrumento de trabalho, virou centro de entretenimento - ao pé da letra. Capaz, por sua própria natureza, de distrair as pessoas por horas a fio, fazendo parecer importantes as coisas mais idiotas. Nas máquinas de escrever ou calcular - revolução dos escritórios, há apenas um século! - o datilógrafo ou contador jamais seria interrompido por uma mensagem súbita, invasiva, avisando algo intestino do sistema operacional - nossa, que termos! - ou perguntando se você prefere assim ou assado. Um só desses avisos pode facilmente roubar meia hora. Talvez, impeça definitivamente o retorno a um estado mental. Talvez "delete" uma condição de criação.

E diante do computador, ligado em rede a milhões de outros pelo mundo fora, permanecemos horas sem dar um passo, apenas com ligeiros movimentos dos dedos, olhando fixo para um tubo de raios catódicos, como se fosse uma janela da vida e do mundo. É por isso que garanto ser possível morrer de automóvel e de computador...

 

Publicada Sexta-feira, 21 de Maio de 1999

 

 

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