crônica do dia

Existir

22/12/05

O primeiro dia inteiro do verão de 2005 acordou debaixo de espesso cobertor de nuvens e com cara de sono, do lado de cá do fim do mundo. Um gavião voava baixo por aqui, apesar da falta de vento e, por isto, a passarada fazia grande alarido a se avisarem uns aos outros sobre o perigo.

Depois, o sol veio mas, no azul, um véu impede a luz rasgada e a cara deslavada de verão. Um trator se sacode com violência, em uma obra a uns 500 metros de distância, e faz um barulho tão grande que parece dentro da cabeça.

É difícil lidar o barulho, com as repetidas sacudidelas. Ontem, uma amiga me falava que chegara esbagaçada de uma ida ao centro de São Paulo por causa do barulho infernal. Imagino que, além do frio glacial, o inferno deve ter sons em níveis de show de roque pauleira - malgrado eu não saiba, exatamente, o que isto seja.

Passa um helicóptero em vôo rápido e muito baixo com estardalhaço indescritível. Vibram os vidros e tudo repercute. Muitos cães decidem que é hora de latir. O trator cala. Na certa é tempo de esquentar marmita ou, talvez, as pegar quentinhas nas entranhas do motor da máquina. Por um instante há silêncio, ou quase. Grande amigo me manda frase de John Cage (a mim, que nem o conhecia): "o silêncio ... não existe". E nós existimos? Perguntaria algum daqueles gregos que viviam num tempo de silêncio, num mundo sem máquinas, sem eletricidade, povoado por deusas e deuses e semideusas e semideuses e...

Ah, a verdade objetiva, matemática, lógica constrói a sociedade palpável a palpos aracnídeos e edifica a geometria e a ponte e faz o piano e toda a orquestra, mas não a sinfonia. Tece o computador e lança foguetes à Lua e luas à Terra e poemas ao papel ou ao gravador, mas Homem escapa e se sente nu e incompleto e busca e tateia e fareja e continua a procura não sabe muito bem de quê.

 

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