A Terra gira outra vez sobre o próprio eixo e isso é bom. A Lua gira ao redor de Terra e ao redor do Sol numa composição de movimentos que torna seu rasto como o da serpente, só que invisível, nas areias que não há, e isso é bom. As águas desabam e percorrem todos os rios para se salgar no mar e, depois, destiladas, às nuvens voltar, e isso é bom. As folhas caem e novas folhas vêm substituir as que atapetam o chão, e isso é bom. A flor fenece e se desfaz em pétalas murchas, mas seu ventre cresce e se perfuma em fruto, e isso é bom. As mulheres menstruam e as fêmeas dos bichos anunciam em seus cios a próxima e inexorável geração e isso deve ser bom...
O que queria dizer é que me parece insuportável a idéia de precisar comer todos os dias. Isso é ruim. Tudo que é vivo, precisa. Até o abutre, escolhido por Zeus para infligir o castigo eterno a Prometeu, precisava voltar a cada dia. Não poderia comer o fígado todo de uma só vez, para ter, também um saciar eterno. Só a morte sacia a fome para todo sempre. Com o resto, quando se faz uma coisa, está feita. Pronto! Depois, é tratar de esquecê-la e passar à próxima. Mas com o pão nosso de cada dia isso não é possível - o terrível não é o pão nosso, é o cada dia. O que apavora é que quando se passa a manteiga no pão, já se sabe que é um gesto inútil, uma tarefa perdida. Será necessário repeti-la amanhã e em todas as outras manhãs, enquanto houver pão, manteiga e vida.
Mas não era isso que queria dizer... Parei para conferir se Satanás estava aqui, ao pé de mim. Queria dizer muitas coisas. Vou tentar dizê-las antes e bagunçar depois. Primeiro: suponho que uma afirmação dessas não faz sentido, absolutamente algum, para uma mulher. Segundo: falo essas coisas e, ao mesmo tempo, percebo com toda clareza que são a negação explícita da vida. Terceiro: é óbvio que por trás desse clamor está uma monstruosa inveja dos Deuses.
Talvez por estar mais visceralmente ligada à vida, por ser usina de novas vidas, a mulher me parece aceitar com mais naturalidade todos esses ciclos que tanto me exasperam. Posso estar enganado. Nada há de científico. É mera especulação de um observador. No entanto, acabo de dizê-lo e lembro de minha avó. Era mulher e, mesmo assim, sonhou até a morte com um pílula que, engolida, dispensaria a necessidade de qualquer outro alimento. Na época, parecia-me um absurdo, mas eu era uma criança... Talvez, para algumas mulheres, possa fazer muito sentido...
As pedras não comem, podem enfrentar séculos de jejum. É tão óbvio, e tão ululante, que a revolta contra o metabolismo é uma revolta contra a própria vida, que pressinto um olhar malévolo de Satã... um olhar como uma risada. Mas, queridas leitoras, estou mais dispersivo do que nunca e já posso ouvir uma voz conhecida dizer que é porque não como como devia - ah, língua! Como deixar passar uma oportunidade dessas, como? E é fato: tomei uma vitamina, mas coloquei bastante aveia. Havia um monge no colégio de São Bento, cujo nome não consigo lembrar, mas pouco importa, porque não seria dele mesmo, o nome - você sabia que os monges adotam "codinomes", como os policiais? - Lembrei! Estevão Bettencourt! Pois dom Estevão não comia. Um irmão - os que não tinham sei lá que grau de instrução eram irmãos e não monges - pois o irmão Lino, que tomava conta do que chamávamos sem preconceito de bar do colégio e, hoje, virou cantina, contou-me que dom Estevão tomava apenas um ou dois copos de vitamina por dia... A julgar pela aparência, devia ser verdade. Pelo que me lembro, era o mais erudito teólogo do mosteiro. Talvez por isso, nunca se misturasse aos alunos. Vivia em outras esferas, inatingíveis para a molecada...
A linha de chegada chega mais rápido a cada
dia. Lá vem ela, e eu não cheguei a lugar nenhum...
A inveja dos deuses me assombra a cada dia, em cada pequenina
coisa. O homem - o ser humano - sonha com o monumental! Poderia,
como qualquer bicho, fazer as coisas do seu tamanho, na sua escala,
na medida de sua mão e de sua força. Na medida de
sua boca. Mas não, quer sempre o mais potente, o maior,
o mais escandaloso: a pirâmide de Queóps, a Torre
Eiffel, os sete mil cavalos do Apocalipse no motor do automóvel,
o sanduíche com mais andares do que o Empire States (símbolo
é símbolo, tem todos os outros lá, mais altos,
mais isso e mais aquilo... muito menos símbolo, porém.)
O Homem quer a mulher mais bonita ou, então, quer logo
todas as mulheres da Terra, como queria Zeus...
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