Goleada


26/08/97

Nada disso, dona Sabrina, nada disso. Jactar-se não tem nada a ver com regar o jardim, dona Sabrina e, tampouco, com os valorosos soldados do fogo. Não, dona Sabrina, não. Não são soldados de uma tropa de elite dos exércitos de Satanás. É fogo, dona Sabrina, é fogo! Eu sei, eu sei e, além do mais, nem tudo é soldado com fogo, também existe solda elétrica, solda a chumbo e outras soldas mais... Soldas, dona Sabrina, soldas! Soldos são dos soldados, eu sei, são os soldos que soldam, não: que saldam... deixa pra lá, está ficando muito complicado, dona Sabrina, eu só ia dizer, que jactar-se, gabar-se, ufanar-se, dos próprios feitos, vangloriar-se de supostas ou efetivas glórias, sabe, dona Sabrina, me sabe estranho, apesar de tão comum.

O sujeito começa: "Porque eu fui, porque fiz isso e aquilo, porque eu disse, falei com todas as letras, na cara dele..." Fala com a boca cheia e o peito estufado e conta suas glórias, seja ele o Mané das pizzas ou Napoleão Bonaparte. Vale notar, que é totalmente dispensável a compreensão da língua que fala o fanfarrão, para se saber todo o conteúdo de seu discurso. A entonação diz muito mais do que o que as palavras. Pode ser português da Ilha da Madeira, o dialeto dos surfistas da Praia do Diabo ou Swahili, pouco importa, o tom da bazófia é inconfundível.

Seria desonesto, no entanto, se omitisse aqui que, nesse quesito, os homens dão de dez a zero na mulheres. Cravo este escore tranqüilo, por me não lembrar de ter visto, uma única vez, qualquer mulher se jactando assim. Calma, Valdemar, calma. Claro que você se lembra de inúmeros casos e eram mulheres terríveis, não é Valdemar, terríveis e que viviam a jactar-se, de boca cheia e peito estufado, certo Valdemar? E não vai dizer, também, que em matéria de peito estufado elas são muito mais poderosas? Mas agora, cala a boca, que falo eu. Que me lembre, vi apenas homens contando façanhas imaginárias, feitos e glórias que só a um Alexandre caberia cantar. "Aí, eu disse, na cara dele, tu pensas que berimbau é gaita?... e, depois falei: toma tento, porque, senão... " Na maioria das vezes, são guerras verbais, onde as piores baixas sacrificam pronomes, concordâncias, e coisas assim... Ah, o subjuntivo também. Nossa! Como somos nossos hormônios, com o tempero apimentado de nossos neurônios! Ah, quanto do animal dorme ainda um sono leve em nós!

Não é de espantar, me parece, que seja um comportamento tipicamente masculino. Nem me surpreenderia se, um belo dia, algum cientista alucinado descobrisse uma enzima, ou algo assim, ligada aos hormônios masculinos e coisa e tal, que justificasse e explicasse esse comportamento de fanfarronice. Poderiam chamar a suposta enzima de bazofina, por exemplo, mas creio que os médicos iriam preferir fanfarronicina, que se parece mais com nome de remédio.

Por que tanta bobagem? Pelo fascínio do anti-herói. Imagino entrar numa livraria e descobrir nas prateleiras a Obra e Vida Completa do Zé ninguém, em 17 volumes ou, os 12 Trabalhos de Joaquim da Silva, e poder encontrar aí, leitura agradável e ficar tão preso à obra como acontece com os poquetebuques de detetives, para a maioria. Queria a simplicidade de poder contar bobagens, onde me dei mal, saí derrotado, fiz tudo errado, meti os pés pelas mãos e, mesmo assim, essas bobagens tivessem gosto de pasta de dente com café, ou qualquer outra coisa humana, apenas humana. Acho que essa maluquice toda é uma certa indigestão de super-heróis. Se abrimos mão do super-herói, não é mais preciso a tragédia, a catástrofe, o cataclismo, a guerra. Pode-se abrir mão, até, do simples cadáver, tão usado para começar a história...


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