Grito

 

No dia de natal fez frio! Parecia mais frio ainda por causa da umidade. O ar se desfazia em gotas. Garoava. Ah, São Paulo inexplicável, como tanta coisa mais que não se pode explicar!

Chega carrancudo o ano que parece o último do milênio, mas não é, como chegou carrancudo e absurdo esse verão que é mas não parece... O ano que se acaba, pareceu rude, desumano. Os maiores destaques estão relacionados ao que se costuma chamar de ética, de moral, etc. Como a bola de neve - que por aqui nunca se viu -, o comportamento dos homens contagia e o que ontem era escândalo passa a ser corriqueiro.

Por exemplo, não parece coisa muito grave querer se apropriar do máximo que for possível abarcar, quaisquer que sejam os meios para tanto. Conseguir riqueza parece ter se transformado num argumento que justifica qualquer meio. Talvez esteja existindo um tipo de "seleção" que Darwin não previu, na qual a redução do número de predadores não reduz a voracidade predatória, pois nada sacia, uma vez que a ganância cresce na mesma medida e o mesmo número de indivíduos está sempre pronta a abocanhar cada vez mais.

Levando adiante a comparação, pode-se imaginar que a população das "vitimas" diminui, já que os muito pobres sequer podem ser saqueados - morrem à mingua pelas ruas, sob nossos narizes, aos nossos olhos indiferentes - e não poderiam ser considerados presas. Ao chegarem a esse estado, é como se já estivessem mortos para uma "seleção econômica".

Há décadas repete-se que o fosso entre ricos e pobres aumenta (quer se trate de países, quer se trate de pessoas). Outros, para não dizer às claras do que se trata, preferem o eufemismo: é cada vez maior a concentração de renda... e a montanha de "renda" cresce de um lado e a de pobres do outro...

Não há pudor ao escolher os meios. Não há pudor ao impor os preços. Pelo mundo todo rifa-se o que um dia foram os chamados "serviços públicos", aquilo que aprendi ser a explicação para a existência dos impostos. Mesmo assim, esses que já foram dízimos, agora passam do terço! Para quê governo? Os países sucumbiram às corporações. Os governantes sucumbem poder de sedução das companhias transnacionais... De fato, governos se tornaram prescindíveis, descartáveis. Para quê governo?

O poder, como sempre, é um fim em si. Interessa apenas pelo poder que confere. Poder que sempre foi um meio eficaz de obter mais riqueza, para si e para sua turma. Para mantê-lo, se necessário, pode se simular uma guerra com uma desculpa qualquer, ainda que ao preço de alguns milhares de vidas.

Diante da vida absurda que vivemos, proliferam as empresas que vendem ilusões, promessas que só teriam que cumprir após a morte dos credores. Cobram, no entanto, à vista e aqui. Vão desde as multinacionais aos camelôs de sortes e oráculos. Umas com sedes imponentes, outras com barraquinhas nas esquinas ou na Internet. Cada tostão que se possa amealhar é sorvido com sofreguidão. A escuridão da Idade Média ameaça com sua sombra!

Apesar de tudo, tudo indica que o Homem continua o mesmo há milhares de anos - milhões talvez: voltado para seu umbigo e incapaz de amar. Levando a vida como se fosse eterno e incapaz de perceber-se parte de um organismo maior, a humanidade, ela mesma apenas uma parte do mistério maior: a Vida!

Há 139 anos, John Murray publicava a primeira edição de "A Origem das Espécies", com o subtítulo: "por meio da seleção natural ou a preservação da raças favorecidas na luta pela sobrevivência", de Charles Darwin. Hoje. Falta alguém com a mesma dedicação para estudar "A Origem dos Milionários", que poderia ter um subtítulo mais ou menos assim: "por meio da seleção econômica ou a preservação da moral mais duvidosa na luta pelo enriquecimento".

 

Publicada em 27/12/98

 

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