O rapaz chega ao caixa do supermercado com
dois carrinhos superlotados. Bem, antes que prossiga, preciso
dizer que, só por isso, já o considero um herói.
Cada um de nós tem suas neuroses mais abismais, mais inexplicáveis
e inexpugnáveis. A minha, ou melhor, uma das minhas, cruciais,
teológicas, é o supermercado. Se dissesse que já
passei fome, só por causa dessa preguiça infinita,
o leitor duvidaria de mim. Então, não digo. Resumindo:
eu, num supermercado, não sou eu, é uma espécie
de robô, em estado de choque. Pois bem, o rapaz chega ao
caixa com dois carrinhos e, de novo, me interrompo, como se não
conseguisse passar daqui, do mesmo jeito que, muitas vezes, não
consegui ultrapassar essa etapa da vida: desisti. Abandonei simplesmente
os carrinhos, e saí, leve. Pois nosso herói tinha, de quebra,
o filho: - Pai, por que isso? Pai, como é aquilo? Pai,
vai demorar? Pai, você comprou sorvete? Pai... Um herói,
já disse, que mereceria mais medalhas no peito que um general
da primeira guerra. Mereceria uma estátua, na frente do
supermercado.
Depois de todo o inferno de passar as compras
e fazer o cheque, o herói vê o aviso de uma promoção
- típico de supermercado! Sempre há promoções
e sempre têm avisos dessas promoções! Pergunta
à moça do caixa: - o que é isso? Pois bem:
os senhores marqueteiros tinham inventado o seguinte. Cada tantos
reais de compras, dava direito a abrir um envelope, dentro do
qual havia uma cartela com milhares de minúsculos ícones
de diferentes produtos. Algumas cartelas eram premiadas e avisavam:
você fez uma trinca. E aí, o desgraçado teria
que achar os três ícones iguais para ganhar, digamos,
uma caixa de sabão em pó ou de palitos de fósforos.
Acontece que aqueles dois carrinhos cheios, davam direito a uma
pilha de envelopes tão grande, que o herói poderia
passar ali a metade da vida que lhe restava perdido entre ícones
de detergentes e dentifrícios. Disse à moça
do caixa: - toma, fica para você. E se tiver algum premiado,
pode ficar para você. Enquanto continuava seu suplício
- pegar tudo que antes estava num carrinho, colocar de novo em
outro, para levar até um terceiro, maior e dito automóvel,
a moça do caixa abria e conferia os ícones de novos
deuses.
Lá pelas tantas, a funcionária
entrou em estado de visível excitação: -
você ganhou, você ganhou! - repetia isso e não
conseguia dizer mais nada. O herói anônimo parou
sua estratégia de deslocamento dos produtos adquiridos
e foi ver o que se passava com moça do caixa, talvez precisasse
de um copo d'água com açúcar... Refeita de
tanta emoção, ela falou: você ganhou o prêmio
máximo, olha, está aqui, na última cartela,
do último envelope. E mostrava a tal cartela com tanto
ímpeto que era impossível ver qualquer coisa, muito
menos que estava desenhado num canto, um ícone especial,
de um carrinho de supermercado. Aplacada a euforia de uma, pelo
prêmio do outro o herói começou a entender:
- Quando sai esse carrinho, vale um carrinho de compras! Você
não precisa pagar um carrinho! A explicação
ainda deixava muito a desejar. Ela continuava nas tentativas de
explicação e depois, feitas as contas, o herói
só precisaria pagar 25% do valor do cheque, que já
repousava nos subterrâneos das gavetas do caixa. O desenho
do carrinho no canto da cartela pagaria o resto. O cheque foi
resgatado das profundezas e rasgado. Foi feito outro. E a moça
do caixa exultava com os produtos que havia ganho nas outras cartelas...
Aí o herói ponderou com os
próprios botões: essa grana me caiu do céu
, única e exclusivamente, por causa da paciência
e honestidade dessa mulher. Ela poderia, perfeitamente, ter ficado
quieta e com a cartela do carrinho que, se não pudesse
usar por ser funcionária, poderia dar para a mãe,
para uma amiga ou para o namorado. Pegou um quinto do valor do
prêmio e deu, em dinheiro, para a moça do caixa e
quase ganhou um beijo na boca, como prova de deslumbramento diante
de um ato, que a mim, me parece, normal.
À noite, a babá chegou com
o filho do herói, que tinha ido buscar na escola. Estava
tão transtornada quanto a moça do caixa, mas ela,
por raiva e sede de vingança talvez: o motorista do taxi
pegou a nota de sua mão, igualzinha àquela dada
à moça do caixa, e arrancou com tudo, só
para ficar com o troco...
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