Por Hipótese

 

Machado foi o primeiro escritor que vi (deveria dizer li?) se dirigir ao leitor. Eu não passava de um adolescente, mas lembro que parei e pensei. Leitor? Que leitor? A qual dos muitos leitores ele se dirige? Se não foi assim, foi parecido. Joaquim Maria narrava as peripécias das personagens que ele mesmo inventara, que sabíamos, ambos, jamais terem existido em carne e osso e, sem mais nem menos, a certa altura se dirigia a mim, um moleque que nascera quase 40 anos depois de sua morte! Fiquei intrigado. Com o tempo, me acostumei.

Quando comecei a brincar de juntar palavras, enfileirar letrinhas - nunca deixo de me espantar ao lembrar que são só vinte e poucas! Bibliotecas e mais bibliotecas derramando livros pelos sótãos, toda aquela literatura e o que não é literatura também, tudo construído com vinte e poucos sinais! Vocês dirão que mais fantástico é todo o tipo de informação digital feito com apenas dois mas, a mim, encanta-me a magia das letras, o que acabou conhecido como alfabeto fonético. Ele deriva da fala que falamos. É signo dos sons que aprendemos a grunhir muito antes de pensar em qualquer tipo de notação. A língua dos zeros e uns, não sei falar.

Vou tentar outra vez, em outro parágrafo: quando comecei a brincar de juntar palavras, enfileirar letrinhas, senti na pele o que deve sentir quem está do outro lado. Senti, eu disse, porque por certo foi coisa não pensada. Para quem escrevia eu? Muito rápido descobri o quanto era difícil escrever sem existir alguém para quem se escreve. Não, o que se sente não é fácil assim de dizer. Percebi que existia o interlocutor, sempre, independente da vontade, de o criar com minha fantasia. Estava lá, o parceiro de fala, embora mudo, sempre disponível para escutar e sempre capaz de calar, em qualquer a situação.

Sem dúvida, era uma imagem vaga, um ser nebuloso, envolto em brumas - além de mudo, um ser etéreo. Por percebê-lo assim, diáfano, impreciso, pensei em descrever a leitora que não existe, dessas crônicas que nem o são, exatamente. Aquela a quem falo por hipótese, e com a qual tomo certas liberdades, apenas por não existir. Calculei que poderia ser como um exercício de ficção, e busquei na imaginação matéria para esculpi-la aqui. Que olhar teria? Que gestos, que manias? Que andar macio, que arfar e como suspiraria? A voz , os cabelos, tudo seria preciso palpar com calma. Esboçar os indícios que desvendam um alma...

Seria de poucas palavras? Loquaz? Um pouco irônica? Atrevida? Como fazer do nada um ser que não existe? E voltava-me Saramago com sua frase incisiva: é preciso ser-se Deus! Via, pouco a pouco, que a leitora com quem falo quase todo dia, não se podia personificar. É impossível exprimi-la como ser, com muito mais do que a carne e o osso que se costumam mencionar. Não que desejasse uma deusa, virgem e sem mácula para ser imolada no altar dos ideais. De beleza contundente, o que leva fatalmente ao sacrifício também, em outros altares, mais humanos e corrompidos. Ou deusa da sabedoria, capaz de cachoeiras de luz na escuridão de tanta ignorância.

A leitora improvável não era possível de expressar por ser sua natureza vaga, na essência. Tampouco poderia identificá-la a alguém vivo e conhecido, truque barato, para o qual não tenho competência. Por que, então, havia definido o sexo desse leitor abstrato? Acho que por molecagem - não tenho outra explicação.

O leitor é necessário e existe como a hipótese de um teorema ou àquilo que, em matemática, dizem noção primitiva, como a afirmação de que um ponto não tem dimensão ou de que a reta tem apenas uma e o plano duas. Ninguém pode provar e, se se afirma o contrário, cria-se outra geometria, igualmente boa...

O leitor, para aquele que se mete a escrever, é uma noção primitiva. Já está lá, mesmo antes que deitar a primeira gota de tinta na folha virgem, que não é mais tinta nem folha. Ele - ou ela - existe e ponto. É inútil tentar demonstrar sua existência...

 

Publicada em 12 de março de 1999

 

 

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