Inocência
12/12/11
Muito me espantou, na carta de Caminha, a comparação entre os nativos e Adão, um Adão ainda livre dos efeitos do pecado, pois só depois de saborear o fruto das mãos de Eva, conheceram eles a vergonha por terem suas vergonhas expostas ao mundo sem nenhum pudor - embora fossem, os dois, a população mundial total.
Na carta, Caminha sublinha a índole afável dos índios, prontos a depor arco e flecha quando solicitados por gestos ou a correr espontaneamente para ajudar no transporte dos troncos abatidos para a confecção da cruz da missa primeira. Tal ânimo amistoso e a docilidade dos nativos deste berço esplêndido, então, certamente, com risonhos verdes campos mais verdes e mais risonhos que os de outra qualquer terra garrida, é assinalado ao longo de toda a carta pelo escriba. Ao falar da missa, conta que imitavam os atos e gestos dos portugueses, no ajoelhar e levantar, no elevar braços e beijar a cruz - os índios repetiam tudo conforme agiam os lusitanos. Com dons literários e alma de poeta, Caminha retrata inequivocamente, além da disposição amigável e quase afetuosa dos 'selvagens', nus como Adão e Eva antes do encontro com a cobra, e destaca esta qualidade preciosa: a inocência. Sem 'consciência' de suas vergonhas e, portanto, sem delas se envergonharem, vagueavam despidos pelo paraíso tropical. Pero Vaz o resume neste parágrafo, após falar da comunhão: "Entre todos estes que hoje vieram não veio mais que uma mulher, moça, a qual esteve sempre à missa e a quem deram um pano com que se cobrisse; puseram-lho em volta dela. Todavia, ao sentar-se, não se lembrava de o estender bem, para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior, com respeito ao pudor." Distraída, fingiu falar a seus botões: inocência é como virgindade, só se perde uma vez... |
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