Implico com citações por uma razão simples e óbvia - melhor o pensamento próprio, ainda que simplório ou acanhado que outro, alheio, por mais elegante e profundo que pareça ou seja, e que se repete como reza, pois toda citação vira slogan e todo slogan se emprenha do efeito entorpecente da oração. Apesar da implicância, tropecei em frase de boquiabrir defunto, uma frase autônoma, bela em si. Dessas raras, que independem do contexto e nada perdem se arrancadas de seu texto original, verdadeira oração atemporal. Pouco importa se está em conto, novela ou crônica, se é parte de biografia ou se antecede uma cena de amor ou serve de preâmbulo a morte trágica. Poderia ser simples passagem de tempo. Tanto faz se o autor, da frase, viveu no século dezoito, dezenove, vinte ou ainda vive, que importa? A frase não precisa de atavios é bela em si: "Da janela de um apartamento, Beethoven, tumultuário, interpela o oceano com a mesma violência deste." Não importa por quê, de repente, ela surge assim, como se o músico em pessoa, ou a figura que dele sua música imprimiu em nós, assomasse à janela a desafiar brisa ou ventania, a respirar maresia, surdo e embalado pelo incansável repisar do canto marinho, diante de um horizonte a se fundir com o céu, que importa!? Paro. Mais a escuto, mais me apraz. E você, espectador compulsório do embate de Beethoven com o oceano, na síntese magnífica de Benito Barreto, em "Os Guaianãs", alguma vez caminhava à beira mar, enlevado pela voz suave de Iemanjá ou pelo canto capcioso de alguma sereia - ou, leitora fiel, que seja pela voz imponente de algum Netuno ou outro deus dos mares que ignoro e, súbito, acordes de acordar o mar irromperam imperativos sobre tudo e todos a se derramar da mais banal e prosaica janela de apartamento praiano? Ah, tumultuário Beethoven, violento como o oceano. |
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2454291.23064.787 no dia nove de julho de 1977 - há 30 anos! - abriam-se as portas do lado de cá do fim do mundo