Verbo Intransitivo

9/10/97

Já disse que li poucos livros. Sou analfabeto de muitos assuntos que dormem entre páginas. Também afirmei, e repito: já li demais - os mesmos livros... Conheço uma mulher que anota num caderninho os homens que conheceu. Sem dúvida, dona Sabrina, digo conhecer como a Bíblia o diz... Está tão entretida em encher o tal caderno, que nem presta atenção aos homens que lá vão parar. Interessam nomes, ou melhor: a estatística. Verdadeira Olimpíada dos lençóis!

Voltando aos livros, às vezes, me ocorria entrar num sebo ou livraria - com a mesmo desejo daquele que entra num bar na esperança de descobrir um sanduíche inédito e acaba pedindo, depois de ler a lista infinita, um misto quente e água da bica. No livreiro, olhava as prateleiras infinitas, avaliava a quantidade de livros que havia ali e fazia um cálculo rápido do número de vidas necessário para poder ler todos e saía, pela mesma porta, com a decisão irrevogável de nunca mais ler nada. À noite, em geral, pegava um daqueles que dormem ao meu lado, já muito lidos e rabiscados e lia e gostava. Isso, para não falar do trauma, muito maior, nas bibliotecas, só de olhar a quantidade de fichas, pois os computadores ainda dormiam nos sonhos e cérebros que os fariam depois...

Tem mais: nunca me obriguei a ler um livro por ser famoso, bestseller ou prêmio Nobel. Se gostava, seguia. Se não, largava. No começo, no meio ou, inclusive, perto do fim. Manias, manias... Faço exatamente da mesma forma com os filmes. Se os primeiros dez ou quinze minutos são chatos, saio. Mesmo quando vou com outras pessoas. Saio e espero fora da sala de projeção, se for o caso. Alguns me questionam: - não dá uma angústia imaginar que pode estar perdendo o melhor, que o filme pode mudar e ganhar onze Oscar do meio pro final? Não. Nunca esqueço que só vou poder ver, como com os livros, uma fração ínfima dos filmes que se fizeram e que se farão. Por que logo aquele teria que ser visto? Só por que entrei? Parece mais lógico, já que foi possível provar, e não gostei, colocá-lo de vez no saco dos que jamais verei, junto com a imensa maioria. Se dou uma mordida num sanduíche e acho ruim, por que comê-lo até o fim? Já, quem gosta de quiabo, não perde oportunidade de comer uma quiabada... Com os livros é igual: se gostamos, por que não repetir?

Ora, não era nada disso que ia falar. O que precisava contar é mais fantástico ainda. Gosto de uns tantos livros que nunca li. É isso mesmo, dona Sabrina, há uma minúscula mentira aí. Gosto de alguns livros dos quais só conheço o título. Mas são títulos tão eloqüentes, com um poder de síntese tão absurdo, que o título vale um livro - o título, em si, é um tratado. Tentei ler alguns, uma vez que o título sozinho já havia feito um livro em mim. Tentei, mas como nos filmes, lá pelas páginas tantas, saí. E tem mais: um título se pode decorar - é como um livro possível de ler e reler em qualquer lugar, quantas vezes se quiser. De fato, dona Eufrásia, os acadêmicos diriam que, ou é um verso ou um conceito, tudo o que pode me fascinar num título, nada mais. Mas os acadêmicos talvez não percebam que aquele verso ou conceito, ali, estampado na capa de um gordo livro, é como uma Rainha ou um Rei: são gente, que nem a gente, mas não só... Lá, em cima de todas as outras páginas. encerra promessas e sonhos, fantasias e alegorias impossíveis entre mil outras linhas, na multidão anônima das páginas mil.

Pois bem: um desses títulos, transcendentes em si, independente de haver, ou não, uma linha sequer escrita nas folhas que encima, é de Mário de Andrade. Um livro do Mário que, para mim, ficou reduzido ao título. Adianto que li e reli, sei lá quantas vezes, Macunaíma - a obra-prima. O livro, que tentei ler e abandonei, achei chato, mas cujo título mantém o número um nessa minha lista, é "Amar, verbo intransitivo".

Adiei mencioná-lo pois continua a me parecer insano dizer qualquer coisa depois. Está tudo resumido aqui: "Amar, verbo intransitivo". Eis o enigma da Esfinge! Aí está, resumida em três palavras, uma afirmação terrível. Jesus, que se dizia Deus, precisou falar mais: "amai-vos uns aos outros, como vos amei". E, se escutarmos com todo nosso ser, o Mário disse ainda mais... Todas as aflições humanas, toda a energia que move, constrói e destrói esse emaranhado em que nos metemos, que ergue e derruba nações, impérios, religiões, multinacionais e cercas, em fundos de quintal, todas as musas e ninfas e faunos, as alianças de reis e papas e as alianças de cada casal, mesmo daqueles, que nunca puderam ou poderão comprar alianças tingidas à ouro, todos os momentos de alegria e ódio, a própria estrutura, em sua base, a família - tudo! - questionado num simples título, de um livro que nem é assim tão bom: "Amar, verbo intransitivo".




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