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Intróito29/05/03Introibo ad altare Dei, ad Deum quid lætifica juventute mea. 1 Não era gênio; ingênuo, talvez; quiçá um dos tais casos de desenvolvimento fragmentário a que Jung aludiu.2 Ainda agora, depois de tanto flanar e perambular por vida vã, Frederico se espreguiça e alega preguiça demais para decidir qualquer coisa e, como de hábito, esconde a preguiça atrás de belos argumentos e frases de efeito a revestir tudo da melhor aparência de sabedoria como certas aves psitaciformes ocultam a entrada do ninho com o próprio excremento. Gosta de se dizer apenas um grão de areia, um só grão, de uma entre tantas praias... e, no entanto, Frederico vagueia como se procurasse sua praia, ou as dunas virgens de um deserto intuído, sempre repetidas como ondas do mar. Fala da Vida, como se falasse de um deus. Deus humano e muito racional, arquiteto de destinos, autor da infinita novela do sofrimento humano, deste incrível longa-metragem sem the end, happy ou não. Ao se perceber mero figurante entre bilhões, sorri e com seu sorriso engana alguns. Pior, engana algumas. Se espreguiça e cogita até onde é possível levar o inócuo jogo de seduções. Tenta fazer graça ao se ver incapaz de qualquer alegria: Quis laetifica juventute mea? e goza: introduzo no altar da deusa, da deusa que alegra minha juventude... Rasgam-se as cortinas de outros altares de outros templos, de outros tempos e se desvelam novos deuses e deusas novas de carnes tenras e peles macias. Ah, Frederico vê e, nesse olhar, bebe gole por gole cada canto e cada volúpia a escorrer ávida de sacrifício - vidas humanas, corpos divinos! Por que um só deus todo-poderoso? O canto se ergue do chão e convida a flertar com todos os bezerros de ouro e de lata, com todas as vacas, sagradas ou não. Mas Frederico, o fragmentado, não pode brincar: entre o céu e o inferno, quer os dois... [a continuar] |
1 Palavras que começavam a missa, rezada em latim, em tempos de infância e adolescência. "Introduzo-te ao altar de Deus, do Deus que alegra minha juventude..." Se a tradução não é essa, tanto faz aqui, pois da frase busco apenas sua sonoridade. Há uns dez anos, ela ecoou como música dias e dias até desencadear um longo texto. Este são seus primeiros parágrafos. 2 ".... personalidades que - para felicidade ou infelicidade delas mesmas - nunca, por exemplo, despertaram o interesse do público e que, malgrado ou mesmo por causa disso, possuem envergadura pouco comum; ou são pessoas que passaram por acontecimentos e catástrofes que ultrapassam a imaginação; ou ainda, se trata de indivíduos com dons excepcionais, dons aos quais um outro ser, num entusiasmo inesgotável, poderia consagrar sua vida inteira, mas que, neste caso, estão implantados em uma disposição psíquica geral tão curiosamente desfavorável, que não sabemos se se trata de um gênio ou um caso de desenvolvimento fragmentário." (C. G. Jung, trad. de "Ma Vie" Erinnerungen, Träume, Gedanken; Atividade Psiquiátrica) |
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