Macacos por canoa

 

Outro dia publiquei um parágrafo de Millôr Fernandes nas frases, local de repetir aquilo que se leu ou ouviu e marcou, quer pela sabedoria, quer pelo absurdo. Repito aqui a citação:

"No princípio era o escambo: o homem dava o que lhe sobrava e recebia o que precisava. Mas essa troca absoluta - o supérfluo pelo fundamental, sem noção de outros valores - começou a ficar difícil quando a Ambição perguntou: 'Esperaí, quantos macacos vale uma canoa?'"

Se repito é porque volta e meia esse parágrafo me volta à cabeça. Não como um poema ou melodia que, parecem se repetir autônomos apenas pelo ritmo e sonoridade. Volta como explicação universal para as barbaridades que os noticiários despejam a cada dia em nossas mesas de jantar.

Por todo canto, por onde quer que se olhe, se esse olhar for um pouco mais fundo, vai se esbarrar com aquela senhora e sua pergunta mordaz: 'Esperaí, quantos macacos vale uma canoa?' São lindos os comerciais que servem de recheio no sanduíche da guerra longínqua com a matança na favela vizinha? Graciosas as atrizes que vendem sabão e sabonete entre a fila dos desempregados e a dos carros presos no congestionamento?

Ah, esses deliciosos anúncios e apetitosas atrizes têm uma função macabra... Em absoluto resumo, estão incumbidos de convencer que, para ser feliz, é preciso comprar! E antes deles, muitas, muitas pessoas venderam suas capacidades para o mesmo fim. Não é de estranhar, pois, que a ambição seja vista com naturalidade, simpatia, até.

A criança pequena pega o que consegue alcançar. Usa o que pegou, ou o experimenta, até sua atenção ser atraída alhures, sem que exista dono do que foi tomado e largado, para que outro o possa, em seguida, tomar e largar. Um belo dia alguém interrompe essa posse sem culpa - quase sempre calha de ser uma criança maior - com a terrível declaração do pronome possessivo: é meu! Mas a criança maior também foi pequenina e pergunta permanece: quem proclamou-se pela vez primeira senhor e soberano sobre coisas que encontrou prontas?

Daí em diante, a coisa flui, alimentada e justificada por frases como a daquela senhora -'Esperaí, quantos macacos vale uma canoa?' - e anúncios, como aqueles, que não descrevi mas você, leitora antiga e amiga, sabe muito bem de que reclamos falo. (Eis uma palavra morta! Pelo menos aqui, entre nós, da língua portuguesa atlântica meridional. E era, há uns cinqüenta anos, de uso corriqueiro, embora se usasse mais reclame, com "e".)

Desse reclames, muitos não esquecem as criancinhas, ao contrário, até as têm como alvo específico. Os jornalistas - agora formados e diplomados -, mas que continuam a ser apenas pessoas, que foram criancinhas, que tomaram um susto ou se puseram a chorar diante do primeiro "é meu", os jornalistas também agem, falam e escrevem confirmando as lições aprendidas nos anúncios.

Aliás, não há mais jornais nascidos do impulso de contar a muitos as próprias idéias ou um modo de ver. Hoje se fazem empresas como meio de ganhar dinheiro. Para seus donos, faz pouca diferença se estão vendendo notícias e idéias ou pastéis e picolés. Nelas, os jornalistas e marqueteiros trabalham da mãos dadas, com a fé comum de que o objeto da busca instintiva de todo ser humano, esse desejo obscuro e indefinido que se convencionou chamar felicidade, se poder comprar, desde que se tenha dinheiro bastante para fazê-lo. O objetivo parece tão forte, tão lógico, tão justo e necessário que se compra, ou tenta comprar, tudo e todos, a qualquer preço, confiando no desejo supremo e universal de riqueza.

Até nas palavras, cultivamos a posse e chamamos de bens às coisas que podemos possuir. Mesmo que adjetivemos como bens materiais, são bens. Aí, me pergunto como tudo isso começou e lembro da explicação do Millôr: 'Esperaí, quantos macacos vale uma canoa?'

 

Publicada em 14 de maio de 1999

 

 

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