Mateus

 

Lembro uma piada antiga, onde um famoso caçador relata suas últimas proezas, ao retornar da África. No meio do relato, é interrompido por um telefonema urgente, uma chamada internacional. Não havia telefones com antena e o homem teve que sair por uns minutos. Volta preocupado e nem lembra o que antes contava, mas uma senhora de fino trato, alheia às sutilezas, insiste para que o destemido matador de feras termine seu relato. Ele pergunta onde havia parado e a dama, resplandecendo pedrarias e ouros, informa, com alusões imprecisas. A piada tem fecho fulminante, já que o caçador, graças às ambigüidades das situações, conta o final de uma cena de alcova para o que era, antes, apenas um embate em plena selva ou no meio da savana.

É isso que temo, ao lembrar que é preciso concluir o que ontem se começou a contar. Fica patente que não sou uma Sherazade, não só pelas razões óbvias. Se não me engano, tínhamos uma ilha afastada de toda possibilidade de contato com a civilização onde, por obra de algum acidente não especificado, foram parar duzentos homens e uma única e linda mulher. Pouco tempo depois começou uma guerra pela posse da mulher, que reduziu rapidamente a população a uns poucos - os mais espertos, ou mais fortes. Falta o resto do esboço que prometi.

É pouco provável que qualquer um deles conseguisse fazer a corte à moda antiga - ou atual, se ainda existe tal ritual - e sobreviver, pois distraído pelas coisas do coração, ficaria numa posição frágil, com a atenção dividida, em meio a uma guerra feroz, tornando-se presa mais fácil e alvo mais visado. Em pouco tempo.. babau. Isso nos levaria a uma matança generalizada - já que no terreno da ficção, se mata sem cometer crime ou pecado e nunca li ou vi, até hoje, autor que aparecesse para confessar seus assassinatos. Morrem 199 homens, - só nos resta um único.

Mateus sobreviveria por ser o mais medroso de todos. Por ter horror à guerra, à carnificina, ao gosto de sangue, ao insuportável cheiro dos corpos apodrecendo, Mateus, corre e se mete no primeiro buraco que encontra. Dá sorte. O buraco, que parece uma toquinha de nada é, na verdade, a entrada de uma vasta formação espeleológica. Leva à cavernas maravilhosas - para quem gosta de cavernas - com salões, estalactites, estalagmites, água puríssima, de rios subterrâneos - o conforto de um hotel sem garçons e camareiras.

Mateus lá se mete e fica lá. Come peixes e outros bichos, toma banhos tépidos de uma fonte e bebe água fresca de outra. Fica lá - seguro morreu de velho - bem escondido, dois ou três dias ainda, depois que não há mais qualquer sinal de batalha. Aí, aparece.

É claro que a princesa, àquelas alturas, adora a aparição. Afinal, ela também estava sujeita ao mesmo jejum, que acabara por exterminar tanta gente. E, fome é fome. Ao descobrir Mateus, corre para uma cachoeira, que já conhecia, e trata de se banhar e se perfumar com flores que colhe ali mesmo, às margens das águas sempre límpidas das ilhas imaginárias. Cuida dos cabelos e de todos os mil cuidados sem os quais uma mulher não se sente completamente mulher.

Perfumada e resplandecente, põe-se a caminhar como se não soubesse que Mateus a observava... Segue lânguida e descuidada pelo outro lado da ilha, para não ocorrer de tropeçar em algum cadáver, pois nos filmes e livros nem sempre é preciso cuidar de enterrá-los. Tudo se desenha como nos filmes água-com-açúcar onde mesmo numa ilha deserta, nesses momentos a orquestra começa a tocar alguma melodia romântica.

Pois bem, o que me ocorre é que Mateus, esse novo Adão, esperança de sobrevivência para a espécie sapiens, é homossexual. Tem horror à simples idéia de olhar uma mulher como parceira sexual. Mais que horror. Para ele, seria totalmente impossível - psicológica e fisicamente - levar a cabo as etapas que a natureza aperfeiçoou durante milênios para uma transferência eficaz de genes. Mateus, ainda por cima, é estéril.

 

Publicada em 13 de abril de 1999

 

 

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