Medo Coletivo [2]

 

Esta crônica (ou ensaio?) ficou com o dobro do tamanho habitual. Por isso, foi dividida em duas partes, publicadas em seqüência.

Resumo da parte anterior:

(parte 1)

 

A guerra nos aguardava sorrateira na virada da próxima esquina. Uma guerra incomum, sem guerreiros, exércitos, tanques ou baionetas. Uma guerra que chegaria como a peste, com nuvens como garras mortais de radiações, a contaminar tudo, num trabalho sujo e invisível. Na década de sessenta, o assunto estava em todo lugar, a qualquer hora. Ignoro se escapou das novelas de tevê, mas era papo de botequim e papo sério também. Na Scientific American, todo mês saía um artigo, longo, onde se calculavam trajetórias possíveis e tempos de "resposta", entre outras neuroses que assombravam o inconsciente coletivo. Tudo, transformado em belas fórmulas de física e matemática e acompanhado de detalhadas ilustrações.

Os artistas, é claro, traduziam melhor que ninguém a aflição coletiva. Na época, dois amigos queridos fizeram uma música. Ainda lembro, um pequeno trecho. A letra conta que marcianos (esse o termo, não "existiam" etês) observam a Terra, à bordo de seu disco voador (de novo, só mais tarde se passou a dizer nave). Pois os marcianos do disco voador olhavam para a Terra, no exato momento em que começam a explodir as temidas bombas. Cada uma provocava a explosão de muitas outras. No final, o poema, canta as conclusões que eles, os marcianos, tiraram do triste e belo espetáculo: "colorida desse jeito / hoje tem festa na Terra / comemoram, com direito / o fim maior: o fim da guerra..."

Era a guerra sem guerra. Um Hitchcock: "À espera da guerra". Era chamada de Guerra Fria, mas era uma guerra psicológica contra a humanidade. Alguns atribuíram a esse clima, de véspera do juízo final, as grandes mudanças daqueles anos. O argumento era mais ou menos que "se o barco afunda, aproveitemos os minutos que restam", com pretensões de dar uma explicação lógica para o sucesso do movimento hippie, dos Beatles, da entrega desenfreada ao sexo, drogas e rock'n roll, de toda postura geral de último baile da Ilha Fiscal etc.

E daí? - perguntará a leitora impaciente. Daí, que a visão tardia tem a vantagem de estar imune ao conteúdo emocional - pessoal e coletivo - inevitáveis nas cenas "ao vivo". Daí, que depois do auge da paranóia, aos poucos, começou a passar das cabeças de umas poucas pessoas, para um número cada vez maior de cabeças, a certeza clara, a verdade escandalosa do absurdo que era a humanidade viver com não sei quantos mil brinquedinhos nucleares a espera de um dedo distraído resvalar no gatilho. Demorou um pouco, mas a opinião daquelas poucas pessoas acabou como consenso, como patrimônio do inconsciente de todos - ou de quase todos.

Hoje, o pavor coletivo é outro. A bomba, que já se detonou e corrói a trama social, pode ser menos letal, mas é mais cruel. O alento vem de se vislumbrarem os primeiros indícios, nítidos, de que começa a transbordar de algumas raras cabeças, uma certeza como aquela: de que é um monumental absurdo a sociedade ter como única medida, como metro impar, para tudo medir- inclusive o Homem e seu mistério intrínseco - o dinheiro.

Umas poucas vozes apontam o disparate: deixar de lado todos os outros valores - não, não falo de valores que se podem negociar em bolsas! - esquecer os valores próprios da natureza humana, e fundar uma "nova ética", monstruosa, onde o único parâmetro é a ganância.

A "nova moral" se pode medir, colocar em "bancos de dados", impessoais. As perspectivas de enriquecimento definem o que "é correto". A mensuração do lucro determina todas as ações, mesmo as que violentam o ser humano. Há duas usuras, a "boa" e a inimiga: cobrar pelo dinheiro é normal para uns, crime para outros. Etc.

Como antes, trata-se de uma guerra. Depois do suspense de um holocausto nuclear a nova guerra não é "fria", é física, e continua psicológica. A fome e a exclusão do "grupo dos eleitos" dizimam milhões.

Ecoemos essas primeiras vozes, que apontam a deformação monstruosa, torcendo para ser rápida a mudança no inconsciente compartilhado por bilhões de pessoas.

 

Publicada em 06 de abril de 1999

 

 

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