Sou prolixo. Pronto. Está tudo dito. O ideal seria parar aqui, para provar o contrário, mas não tema, todos sabemos que irei até o fim, ou melhor, o final virá e me pegará desprevenido, antes que possa acabar. Entre os males de tal pecado, este não é o menor: vem o final, de repente, e ficam as coisas no alinhavo, com muito por arrematar...
Há uma mês, um pouco mais venho tentando dizer a mesma coisa e não digo. Ora me distraio com uma palavra e jamais consigo o próximo parágrafo, ora com uma leitora, mais graciosa, mais sapeca, que me faz esquecer a idade bíblica de meus olhos cansados e memória nublada. Ah, Marilu, quanto é fácil se perder pelos descaminhos da palavra! Afinal, são meras palavras...
Por exemplo, agora. Queria ser sintético, dizer e pronto. Pois já esqueci porque comecei isso daqui. O cronista desmemoriado daria um título, talvez. Hoje existem computadores com memórias cavalares - engraçado: escolhem sempre o elefante para falar de memória... Para medir as tais memórias isso e aquilo das máquinas que substituem paulatinamente os absurdos afazeres dos homens, desentocaram umas unidades esquecidas, para não precisar escrever números que pareceriam rosários. No entanto, nunca soube de algum que escrevesse crônicas, contos ou poesia. Ouvi contar que um, depois de longa experiência no ambiente peculiar de uma redação de jornal, aprendeu a fazer matérias esportivas, contar em tantas linhas, de tantos toques, como tinha sido a partida de futebol. Mesmo assim, era incapaz de assistir ao jogo e descobrir seu resultado e, totalmente neutro, nunca soube torcer.
A memória - diria minha amiga, que se diz palhaça - é uma faca de dois legumes, no irresistível de trocar letras e sílabas e palavras e significados. E, como quase sempre cabe ao cômico dizer a verdade maior, tenho que concordar. Perigosa como gilete, das antigas, que cortam pelos dois lados. A memória é uma gilete azul - será que ainda existe, gilete azul? Eu preciso, é claro, lembrar o caminho de casa. Pelo menos, lembrar o endereço, para dizer ao motorista. Eu preciso olhar uma faca e saber que é uma faca e para que serve. Lembrar sua utilidade e a de uma colher. Lembrar que já usei aquilo e sei muito bem para quê. Este, um legume.
Agora, a memória pode ser traiçoeira quando se transforma numa prisão. Este, o outro. A memória pode nos prender à experiência e nos impedir a inocência diante do novo. Contaminamos de imediato o que brota com nosso olhar, que imagina já saber. Somos incapazes de qualquer pureza por trazer um acúmulo de conclusões, de rótulos, de nome, de preconceitos (no sentido literal da palavra). Nos deparamos com a situação nova, com a nova pessoa (e a cada dia podemos ser outro!) como quem carrega os vinte volumes de uma enciclopédia debaixo dos braços - totalmente imobilizados pelo peso de tanta "sabedoria".
É isso! É isso aí. Passamos a vida toda acumulando informação, como um computador. Nossa memória ram, nossa memória rom, nossa memória rum bacardi ou montila ou seja lá que outra droga for, vai ficando saturada de programas, de aplicativos, de conexões, de browsers, de bancos de dados de textos e imagens e sons e vídeos e sonhos e profecias e afirmações e contradições...
Aí acontece o inesperado, na próxima esquina, como costuma acontecer. Você se depara, de repente, com a situação ou pessoa. Viva, pulsando e emanando vida ali. Diante de seus olhos, de seu nariz, de seus ouvidos - um desafio vivo com que a vida acena pra você. E o que você traz para esse encontro supremo? Sua enciclopédia da vida, surrada, empoeirada, roída por tantas traças que mais parece uma peneira.
Viu? O final chega, de repente, e me pega desprevenido.
Desta vez, vou ter que acabar sem lembrar, ao menos, porque comecei...
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