Diluem-se os primeiros véus. As caras sacanas das segundas intenções deixam-se já adivinhar. Outros véus, outras promessas... - Frederico caminha. Já nem sente a cidade-monstro e o mar não existe. É só idéia, nada. Entraram muitas pessoas. A moça mais bonita, mais alta, espichou o pescoço, perscrutou o vagão até o fim e sentenciou: - não tem outro lugar. Sentou e pegou as tralhas da outra, mais feia. Na estação seguinte, as duas sentaram-se, lado a lado, defronte de Frederico. A mais baixa e mais feia pegou um jornal e começou: olha só como o Darci deixou o meu jornal!...
A mais alta e mais bonita era bonita quase demais. Olhos grandes verde-azuis, a testa redonda, bem feita, sobrancelhas escuras, espessas. A boca... bem, a boca sempre parece o ser mais difícil e, por isso mesmo, mais apta a trair a alma e o sonho de perfeição. A mais baixa, além de mais feia, começara e não parecia disposta a parar - eu nem li o jornal, olha só como tá tudo amassado, tudo bagunçado, o Darci é muito folgado. Isso é falta de respeito.. - e ia numa torrente de reclamações, enquanto conferia o jornal, no aperto do metrô, tentando pôr ordem, ou descobrir se faltava algum pedaço. A bonita, da beleza quase perfeita, parecia nem ouvir, e quem não observasse com muita atenção os cantos de sua boca, poderia pensar que ela, de fato, nem ouvia. Mas a irritação com o despropósito dos resmungos da colega criavam um icto quase imperceptível, justamente nos músculos que formam os limites dos lábios, de seus lábios nus, sem batom. O Darci - dizia a outra - ficou um doce, depois que eu reclamei dele ter lido todo meu jornal antes de dizer bom dia - e muito mais contou e disse à mais alta, de cabelos negros, brilhantes, ajeitados com graça por uma presilha e que, por serem também muito longos, se esparramavam um pouco sobre os ombros. E Frederico estava assim distraído quando a mais alta, mais bonita, mais educada, mais atraente disse apenas: Basta! - e acrescentou, mostrando com os dedos bem feitos, de unhas roídas - cinco centímetros é isso! Foi só então que Frederico olhou para o jornal. A matéria da capa era sobre baratas, sim a periplaneta americana, da família Blattidae, que parece ter um pacto ancestral com os seres humanos e, em particular, com os do sexo feminino. O tamanho, deveria ser o tamanho de algum exemplar, ou um limite de tamanho, talvez. Frederico achou muito natural que tal assunto despertasse tanto interesse e excitasse tanto a mais baixa, mais... sim, muito mais. O barulho do metrô nos trilhos impedia de escutar a conversa, salvo quando a de longos e negros cabelos lisos falava mais alto - primeiro lê! - e o tom traduzia todas as entrelinhas dos cantos dos lábios.
Mas, fosse pelo incômodo de se sentir tão
minuciosamente observada, fosse pela torrente infinita de palavras
sem pausas, da outra ou por razões que Frederico nem sequer
poderia adivinhar, Roseli - o nome da mais bonita, pois era a
outra quem jorrava tanta falação - Roseli, dizia,
anunciou - quero acabar de ler este livro - e tirou da bolsa um
par de óculos, quadrados, de hastes fininhas de tartaruga,
que lhe emprestaram um ar recatado e misterioso, de clausura de
convento. Ela abriu, numa página marcada, ainda do começo,
e pôs-se a ler "A Outra Face da Moeda". A mais
feia calou. O trem ia parando. Frederico vacilou um instante,
mas ficou na "sua" estação, sem perceber
que, ao partir, o trem levava, um fragmento de sua vida. Ele ainda
parou um momento na plataforma e buscou um olhar, um rosto, através
do movimento das janelas do trem.
NOTA: Foi mera coincidência esta crônica antiga - 1995 - ter calhado para abrir este espaço. Os mais cépticos dirão - ah, tá bom, conta outra - e terei que responder, como Nelson Rodrigues, que "não nos cabe discutir, mas simplesmente aceitar as coincidências." O título, é óbvio, sim, foi talhado pra aqui e só me ocorreu no dia seguinte... |
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