Miragem

19/10/17

"No princípio era o Verbo" - reza o Evangelho de João, capítulo um, versículo um. E só podia ser, posto ser Ele uma criação do Homo verbalis. A fúria de compreender fez do Homem um animal verbal, capaz de sobreviver em um universo de ideias, portanto, de palavras. Anfíbios entre o mundo dos fatos e aquele das ideias, da imaginação, do devaneio tornamo-nos animais racionais, subjugados pela razão, gladiadores armados de porquês e arrazoados, prenhes de regras e legislações, ávidos por explicar e encadear didaticamente belos raciocínios, por conduzir a mente alheia segundo nossos objetivos pelos caminhos escorregadios das palavras - falar, falar, falar.

Surgiu o mercado de conhecimento, onde cada informação obtinha sua cotação e no comércio paralelo corriam a fofoca, a maledicência, a calúnia, a difamação e o mexerico. A mentira podia ir de uma bombinha de São João ao poder de uma arma nuclear e, subproduto da razão, brotou e vicejou a superstição. O frenesi de explicar achava relações em simples acasos, relacionava coincidências fortuitas e via conexões em acontecimentos independentes. A mente verborrágica tecia explicações, fantasiava hipóteses e lentamente forjava Deus, o Verbo inicial.

Engendrava-se, assim, o embrião da sociedade. Despontaram costumes, talharam-se regras, descobriram-se subterfúgios e alguns souberam aproveitar a ideia de Deus para com ela dominar multidões. Uns poucos perceberam e calaram sobre o poder não estar apenas na força física ou na posse de uma arma engenhosa enquanto o dinheiro, recém-inventado, inaugurava uma nova era de dominação.

Surpreende, passado tanto tempo, se olhar ao redor e ver ainda o Homem como lobo do Homem? Assistir a tudo quanto a mídia divulga e ao mesmo tempo adormecer embalados por discursos de pregadores religiosos e políticos espertalhões?

A crônica homenageia o aniversário de uma amiga.

Thu, 19 Oct 2017 12:46:14 -0200

Adorei !
Com certeza Homo verbalis é bem mais próximo dos fatos do que Homo sapiens...

Não lembro se já mencionei pra você um autor (acho que chama Robin Dunbar)
que escreveu um livro intitulado: Grooming, gossip and the evolution of language.
O argumento dele é que a linguagem começou pela fofoca, que teria substituído o
grooming dos outros primatas - como um espaço de interação e coesão (e tipicamente feminino...).

Uma tese entre várias outras diferentes...

Bjs
Ana

Oi, Ana,

Que bom que você gostou.

Não lembrava de Robin Dunbar, mas a teoria que você descreve me soa familiar, talvez você já a tivesse mencionado antes. Se querer ser chato pela insistência, foi no livro "Homo Sapiens", de Harari, que me deparei pela primeira vez com sublinhar-se a importância da fofoca na evolução do Homem. Ele deve ter lido "Grooming, gossip and the evolution of language", penso eu. Quanto a mim, pensei e mencionar o caráter feminino da interação, mas acabei calando.

Obrigado pelo comentário e pelas sugestões.

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