Primo Nicolau

22/10/97


Primo Nicolau pôs os pés sobre a mesa, como sempre, equilibrou a cadeira nas pernas de trás, soltou a fumaça de seu charuto em rodinhas ritmadas, tudo estudado, para causar suspense e chamar atenção. Depois, falou: primo, é matemático - e repetiu separando as sílabas - ma-te-má-ti-co, se a mulher não trai, fica doente. Aí calou, dono da cena, e enfiou o charutão na boca.

Primo Nicolau era olhado como a ovelha inevitável e parda que cabe a toda família arrastar. Algumas tias, mais carolas, discutiam mesmo a cor da ovelha: parda só, todo aquele negrume? - cochichavam cheias de afetação, como se quisessem ouvir mais uma vez os tios mais duros e afastados repetirem: ovelha negra nada, é só pose do rapaz, teatro, tem até um bom coração...

Primo Nicolau, depois do rito tabagistico, continuou: primo, tu vives aí, dentro desse gabinete que, hoje nem se chama gabinete mais, quem tem gabinete, agora, é geladeira e televisão, tu vives aí, metido nesse computador, como se fosses um apêndice do micro, mais um plug&play, um mero acessório, pois a mim me parece que é ele que faz gato e sapato de ti. Enfim, como podes querer saber das coisas do mundo de verdade, que existe lá fora, ou lá dentro, pois acho que és tu quem está por fora...

Primo Nicolau era de morte! Nunca perdia uma oportunidade para tirar um sarro. E falava bem o desgraçado! Continuou: escuta o que te digo, primo, a mulher trai, porque seu destino é trair. Calma, calma... - e acendeu outra vez o charuto, que deixava sempre apagar. E foi: - veja bem, sabes que não sou supersticioso, a parte os despachos que faço, quando necessário, não sou chegado a crendices ou presságios nem qualquer tipo de superstição. Assim, se digo destino, não imagine um grosso alfarrábio com o registro dos desejos de algum todo poderoso a definir como inexoráveis os amanhãs de cada um de nós, não. Falo de um destino biológico, caro primo, desígnios, apenas, da natureza feminina. Assim com está predestinada a sangrar a cada mês, a mulher também deverá trair, até contra sua própria vontade. Se não trai, adoece. E tão somente porque a Natureza assim o quis.

Primo Nicolau se espichou num espreguiço maior e quase caiu da cadeira. Pôs seus olhos nos meus, a procura do efeito de suas palavras. Acendi um cigarro, agora eu, já que a brasa de seu charuto estava mais acesa que nunca. O primo tirou as botas da mesa, serviu-se de um café apenas morno, desfez a pose e começou a explicar os meandros e volteios de suas conjeturas. Falou: pensa, primo, é uma questão matemática. Considera o número de gametas que cada ser produz ao longo de toda sua vida: nós, tu bem os sabes, fabricamos muitos milhões, bilhões até. Já a mulher, dificilmente chega aos 400. Ora, por que tal disparidade? A Natureza não seria assim injusta de graça, teve milênios para aperfeiçoar... mas há a famosa disputa, a eleição do mais apto, no dizer do Charles, o Darwin. E aí chegamos ao ponto: se há uma corrida, cumpre conseguir que se inscrevam os melhores pilotos, ou atletas, ou jóqueis e cavalos, dependendo da corrida que for. Certo?

Primo Nicolau tinha mudado da água pro vinho, desde que chegara. Agora, falava sem afetação, e começava a se empolgar com o que dizia. Deixei que falasse. Disse que mãe Natureza havia preparado a mulher para se deitar com muitos homens, num curto espaço de tempo. Fez analogias com o que chamou de impulso inato à traição com as tarefas dos marqueteiros incumbidos de organizar e promover um grande prêmio. Para ele, sem a moral e a ética, e enfatizava: "tão humanas", tudo seria válido e nada, pecado. Argumentou que, acima dos interesses individuais, falam os interesses da Espécie e que esta, sem dúvida, importa mais à mãe natureza do que o sacrifício de alguns indivíduos. Citou, como exemplo, os insetos sociais e disse que formigas, cupins e vespas, têm um comportamento suicida para defender a simples colônia, um ninho apenas, e completava, cheio de eloqüência: "o que dizer, quando é para defender a existência da própria espécie!"

Primo Nicolau concluiu sua tese, diante de meu olhar perplexo: por tudo isso, caro primo, podemos pôr cabresto e domar os instintos mais animais que existem em nós, mas ao fazermos isso, interrompemos um fluxo vital primordial, atingimos a Natureza em nós e ela se ressente da pancada e da ferida e, como conseqüência, adoecemos. Podes crer: o homem, terá sempre vivo o impulso de se interessar por toda mulher que lhe chamar a atenção - não esqueças, são milhões de células retidas. Prontas para distribuir. A mulher, sempre que ouvir seus instintos mais íntimos, trairá e, traindo, estará apenas cumprindo um papel que mãe Natureza lhe impôs, na busca do vira-lata ideal. As raças de puro sangue, tu sabes, definham, têm apenas serventia comercial... Primo - aqui ele fez uma pausa e me olhou direto nos olhos - se a mulher não trai, é matemático, fica doente. Tocou o telefone. Atendi. Era voz de mulher...

Primo Nicolau, é para você...




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